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Full text of "Sons que passam"

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SONS QUE PASSAM 






SONS QUE PASSAM 



DE 
THOMAZ RIBEIRO 



Segunda edição corrigida 



PORTO 

LIVRARIA MORE 
PRAÇA DE D. PEDRO 

4873 



l ,4 



4Í)3S5tí 






*W0- • «w « 'S 



PORTO.' TYP. DB MÁNOKL JOSÉ PEREIRA, 

Bua de Santa Thereza, 4 e 6 



O' doloridos sons da minha ljra, 

vibrael passas) , 
Sois o triste sorrir de quem suspirai 
o fugaz suspirar de quem delira! 
de vós o mais alegre é quasi um aiL 
O' doloridos sons passae! passae! 



Quem habitualmente vive nos campos conhece e apre- 
cia os — sons QUE passam — vozes que se cruzam nos 
«rés, que se repercutem nos ecos, e vão perder-se na 
distancia; sons que se vão acordando e crescendo á pro- 
porção que diminue o côro-burburinho da humanidade; 
harmonias que não cabem na arte e se perdem na natu- 
reza; cantos que só têem affinação no theatro modelado 
pela acústica do infinito. E a catadupa do rio, na sua 
<juéda monótona e plangente; é a flauta do pastor entre 
os balidos do armento; é a cantiga do barqueiro levado 
a sabor da corrente sobre a tremula esteira do luar; é 
st canção de gloria que o soldado e a vivandeira vão 
cantando na estrada; é o prolongado coro dos campo- 



nezes que voltam do trabalho; è os fragmentos de riso» 
e harmonias festivas que fogem do palácio iHuminado; 
é a conversa das aves nos choupaes; o lamento das sau- 
dades; o murmúrio da prece... e todo este concerto vago, 
incompleto, indefinível mas saudoso e atrahente, a ba- 
loiçar-se nas mórbidas lufadas da aragem, perfumado» 
coxins, em que passam as harmonias da natureza. 

Sons que passam também são os cantos efémeros do 
poeta; monólogos da sua fantasia que são ordinariamente 
diálogos com o seu coração, e que se 'noutro coração 
acharam eco, expiram coroados pela máxima gloria a. 
que podiam aspirar. 



Parada de Gonta, 30 d' Agosto de 1867. 



êlmm lilm 







í 




E 




São passados perto de cinco annos desde que se pu- 
blicaram estes versos que em boa consciência denomi- 
nei — Sons que passam. Leio-os agora que se lhes pre- 
para segunda edição e admiro-me de que viram ainda; 
tão singelinhos são pela maior parte. Comtudo foi-me 
aprazível a sua leitura. Voltei por momentos ao meu 
passado e senti verdadeiras saudades ao ler algumas 
d'essas mais singelas composições que ha muito nem re- 
cordava. 

Entre os reparos que fiz avulta o do espirito reli- 
gioso que preside a grande parte d'esses cantos. Nisso 
parece este livro datar de cinco séculos em vez de cinoo 
3nnos; que certas ideias e certas crenças envelhecem 



agora à toute la vitesse, como diria um engenheiro fran- 
cez. 

Pois a questão religiosa prendeu fatalmente todas as 
questões sociaes que agitam a humanidade. O mundo 
tem perdido as suas crenças piedosas; não se illudam 
os povos nem os governos. Gs povos catholicos, princi- 
palmente, vão caindo, uns numa indifferença, outros 
numa reacção temerosa. Quem menos sabe isto é o Papa, 
justamente por ser o primeiro que o devia saber. E 
lucte embora quem luctar para retemperar e robustecer 
a fé; o seu trabalho será estéril. A fé é como a virgin- 
dade, uma vez perdida não se rime. 

Pois se ha espectáculo que contriste, preoccupe e 
atterfe é ver a humanidade a despenhar-se por abysmos 
infinitos, á luz crepuscular d'uma filosofia sceptica e 
.esterilisadora e contorcendo-se e blasphemando como os 
anjos caídos de Milton. 

A razão! só a razão! que é fraca e fria e pouco al- 
lumiada! e o sentimento annullado e a aspiração, as 
ambições, as saudades indefiníveis, a admiração das ma- 
ravilhas sem conto, as melancolias que prendem longe, 
em paizes ignotos e luminosos, e o espectáculo da mor- 
te do crente, que parte a sorrir, entre-vendo o ceo, que 

diz aos seus filhos, a seu pai, aos seus amigos — até 
breve — emquanto o descrente nem sequer tem por ora 



XI 

uma palavra com que se despeça, porque— adeus — não 
pode elle proferir! tudo isto nada! nada!! Ver que a philo- 
sophia com o seu rir de satanaz quebra todos estes elemen- 
tos de reparo e passa com os seus sapatos de ferro por 
sobre os mortificados corações da humanidade, eis o que 
faz retrair o poeta como se retrae a sensitiva ao sus- 
peito contacto do viajante. 

E' d ? aqui principalmente, que nasce o mal-estar da 
humanidade; d'aqui as revoltas quotidianas, as ameaças 
constantes á vida, á propriedade, ás instituições; d'aqui 
o entre-verem os mais aprehensivos, pelas fendas que 
vai abrindo e alargando o terremoto politico, a tene- 
brosa superfície do cahos. 

O — mal-estar — não é tanto politico como é moral. 
Faltando ao individuo um Deus em que se ampare, a. 
quem confie as suas magoas, de quem espere, e até 
contra quem blaspheme nas horas do seu deli rio, fal- 
tando-lhe a eternidade, complemento da vida e realisa- 
<jão d'aspirações, olha-se, acha- se misérrimo, só, ephe- 
mero. Entristece-se, desvaira e procura em quem se 
vingue da esterilisação da sua alma, da annullação dos 
seus sentimentos. Na cegueira da sua injustiça feroz 
vê diante de si o que mais avulta: os poderes públi- 
cos; espuma, troveja, contorce-se e cáe sobre elles que 
só desejam fazer-lhe bem. Assim o doente se revolta 



xn 

contra o enfermeira nas anciãs do sen padecimento; as* 
sim cada um de nós tem dito uma má palavra ou feito 
um arremeço á pessoa que se desvela por nos ser agra- 
dável, ao cão que nos lambe os pés; e temos até cevado 
o nosso mau humor no objecto insensível que mais nos 
fica á mão* 

Oh! e como é desculpável este supremo desgosto, 
sendo a vida um inferno que só se acaba na morte! Sa- 
ber-se que se morre e morrer-se na convicção de que 
tudo acaba ali!... 

Chegando a esta miséria, a humanidade tem direito 
de crear um creador para blasfemar contra elle. 

A culpa... é preciso dizer tudo a todos sem medo de 
impopularidade8; remédio, é o amargo da verdade; ve- 
neno, o mel da lisonjaria; a culpa deste estado deve-se 
principalmente ás imprevidençias dos infalliveis, que 
improvisam ceremonias e complicam ritos quando é pre- 
ciso simplificar o culto; que arvoram dogmas em barri- 
cadas e carregam obuzes com bulias, quando é preciso que 
a divina verdade se humanise e que ò sacrário não 
cheire á pólvora das vinganças, mas sim á pureza das 
hóstias. 

Desde que as religiões se transformam em seitas po- 
liticas descem a uma arena onde nem sequer podem ob- 
ter as honras de belligerantes; os seus adversários poli- 



XIII 

ticos tratam com incontestável direito de minar pelo* 
alicerces a instituição adverea e chega-se á negação da 
Deus por um caminho tristemente lógico. 

Primeiro espanta-se o próprio argumentador da sua 
conclusão, depois acalenta-a ao calor do seu orgulho e 
acaba por convertel-a em convicção. Tornada seita, pro- 
clamada eschola, o que primeiro se mostrara utopia, 
labora, cresce, lavra, lavra, insinua-se e domina. 

O resultado é este: a melancolia do desespero, a 
propagação de todas as doutrinas dissolventes, cujos 
apóstolos já vistos k luz sinistra dos espingardeamentos 
e incêndios de Paris e d , Álcoy > faliam em liberdade 
pela mesma razão porque os neos dos tratos, das foguei- 
ras inquisitoríaes e das forcas faliam em Deus: — por 
conveniência. 

Não se lucta para edificar, lucta-se para destruir, 
lucta-se para morrer. Vesti-vos d'amarello, batalhadores 
sem esperança! como os regipús e os marathas, ao fir- 
marem o pacto da morte, com as mãos no sangue das 
suas mulheres, das suas creanças e dos seus velhos. 

Não sei para onde vamos e ninguém o sabe. Os ul- 
tramontanos acenderam Deus tanto e tanto que nos iam 
cegando; que fizeram os cismontanos? — apagaram-no. 

Os philosophos, alchimistas de nova espécie, metem 
nas suas retortas todos os acontecimentos deploráveis e 



XIV 

fazem o ouro das venturas. A sociedade lá ganhou saúde 
immensa com a sangria que soíFreu na queda. 

Será verdade? Mas passaram séculos nas trevas e as 
Sociedades tiveram de começar de novo; e as injustiças 
nunca se repararam, e os crimes nunca se castigaram, 
e o que se perdeu não se achou. 

Mentis, philosophos da historia, e damnaes a socie- 
dade com as vossas absolvições e sanctifícações. 

A propósito de versos religiosos fallei de politica. 
E' que a politica absorve tudo e corre-nos obrigação de 
não fugir d'ella, visto que nella e só nella se empenha 
a grande lucta. 

Deixemos lá correr os pobres versos que sendo d'um 
liberal e d'um progressista que tem a convicção does- 
tar com os mais adiantados, ainda faliam em Deus! 
Isto em 



Agosto de 1873. 



COROA DESPIMOS 



lias horas do silencio, á meia noite, 
eu louvarei o Eterno. 

Ciçam-me a terra e os mares rugidores, 
e os abysmos do inferno. 

A. Herculano. 



DEO GLORIA! 



A Ti, que és grande e bom; a Ti, que entre caricias 
deixaste que eu crescesse ao pé de minha mãe: 
a Ti, que a tens no ceo gozando o summo bem, 
do meu trabalho, ó Deus, venho pagar primícias. 



PENA E PERDÃO 



i 



Houve tempos de vida, paz e gloria, 
sem mortíferas lanças conquistada; 
não conheciam sangue annaes da historia, 
nem fojo o tigre, nem serpente a estrada, 
nem hymnos fratricidas a victoria, 
nem a guerra trofeos de cinza e nada: 
era tudo ventura, amor, e riso; 
e havia por morada um paraíso! 



Mas quando o homem vive e goza um dia 
sem poder desejar maior ventura, 
pede ao seio um desejo! tal, sem guia, 
quiz-se o feliz perder, ó desventura! 
quiz um éden melhor, outra harmonia; 
quiz mais alto voar... caiu da altura! 
Perdeu graça, riqueza, paz, e amores; 
restou-lhe a vida, e n'ella amargas dores! 



Bom e opulento, um'hora de vaidade 
reo e pobre o levou ante o seu Deus! 
A vez primeira supplicou— piedade! — 
tremeu, corou, curvou-se aos olhos seus! 
Juiz e pae mostrou-se a Divindade: 
— «Em castigo, proscripto és já dos ceos; 
por esmola conquista o antigo brilho; 
trabalha, e viverás, meu pobre filho!» — 



Assim, ao filho desleal, perdido, 
um pae, um Deus, por castigar, beijou; 
e d'orvalho subtil todo incendido 
o rosto criminoso se inundou. 
O sceptro d'immortal caiu partido; 
e o alvião servil quando empunhou, 
pela terra infecunda, nua, fria, 
cavou o negro pão de cada dia!... 



II 



E o homem vivei sobre o chão curvado 
colhe o legado que o Senhor lhe deu! 
mas ai!... perdido, pela senda errada 
não acha estrada que o conduza ao ceo. 

Ai do viandante que não vê caminho! 
ai do mesquinho sem a luz da fé! 
ai! que, na falta d'um amor sublime, 
triunfa o crime, do ludibrio ao pé! 

Deus a esse povo que foi grande e forte 
quiz dar a morte, e retirou-lhe a mão: 
um mar sem praias abysmou-lhe a ossada, 
e a morte e o nada campeou então! 

E d'esses nomes, e d'aquellas plagas, 
que o mar em vagas consumiu, sorveu, 
nem uma lettra de banal prestigio! 
nem um vestígio do que ali morreu! 

Não! Deus não quiz áquella raça inglória 
nem a memoria do epitaphio dar: 
cavou-lhe a campa; jaz... se não repousa; 
deu-lhe por lousa movediça — o mar! 



8 



Dos cavos antros do sanhudo abysmo 
que o cataclismo revolveu e abriu, 
Jehovah, da altura do seu throno augusto, 
somente um justo resgatou, remiu! 

Qual primavera que, dos ceos suspensa, 
vê campa immensa de jaspeado alvor, 
bqfeja as dobras do funéreo sello, 
estala o gelo, reapparece a flor, 

Deus manda! e, base d'edificio novo, 
valente um povo appareceu, brotou, 
levando a vida ás escarpadas plagas 
que o mar em vagas em soidões tornou! 

De novo o homem, sobre o chão curvado, 
colhe o legado que o senhor lhe deu; 
e, desgarrado, pela senda errada 
não acha estrada que o conduza ao ceo!... 



III 



Mas eis que chega a hora 
do assignalado termo! 
Nas trevas e no ermo 
sorri a flor e a aurora! 



9 



Ignotas harmonias, 
tremores jubilosos, 
\ersos mysteriosos 
Da harpa das profecias, 

presagios de venturas 
á triste humanidade 
na serra e na cidade, 
no abysmo e nas alturas, 

dizem que é vindo o Eterno, 
reparador d'estragosí 
dizem-n-o a estrella e os Magos, 
e o rebramar do inferno! 

Depois, o eco se calou dos júbilos, 
6 o cântico de Hosanna emmudeceut 
após a lida, á hora do crepúsculo, 
o Semeador divino adormeceu!... 

Uma cruz solitária sobre o Golgotba 
ao mundo conta onde morreu Jesus; 
e fulgente, vivaz, divina auréola 
Ha m me j a eternamente sobre a cruz! 

E exulta o homem! sobre o chão curvado 
colhe o legado que o Senhor lhe deu; 
e a cruz de Christo, no Calvário erguida, 
mostra a avenida que o conduz ao ceot..« 



/ 



10 



IV 



Como é bella a natureza! 
o orvalho accende a deveza, 
do sol ao vivo clarão; 
myrtos, cardumes de rosas, 
purpúreas, frescas, viçosas, 
vestem as rugas do chão; 
tendo a prumo o sol adusto, 
lida o paizano robusto 
colhendo a vida e o perdãof 



Das aves casando ao canto 
orações, e riso, e pranto, 
chora e canta o camponez, 
nas lutas d'uma anciedade 
d'indefinida saudade... 
do paraíso, talvez!... 
São carmes d'um resignado., 
saudades d'um desterrado! 
Vinde escutal-o outra vez: 



ii 



— «Senhor, se n'este caminho, 
que do nada ao ceo conduz, 
dispensas tanto carinho, 
tanto aroma, tanta luz, 

o castigo do meu erro 
não foi de juiz, não é! 
que eu acho n'este desterro 
caridade, esprança, e fé! 

Como a planta ao chão se aferra» 
tal um poder infinito 
nos prende e encadeia á terra 
como um grilhão de precito! 

Mas se a planta aos ceos envia 
perfumes do seu abril, 
e se o pó da flor d'um dia 
vôa aos paços d'anil, 

nós temos o amor bemditof 
e, quando se acaba a dor, 
noss'alma sobe ao infinito... 
mais alto que o pó da flor! 



12 



Meus filhos, por minha morte, 
sem o paterno carinho, 
ficais no mundo sem norte, 
quasi sem pátria e sem ninho! 

Ai, meus filhos, meus encantos! 
muito custa ao coração 
quebrar os laços mais santos 
que no desterro nos dão!... 

Só vos deixo dois legados 
bem santos, que vem de Deus: 
Paciência, desterrados! 
Resignação, filhos meus! 

Sabeis qual seja a ventura 
do homem que padece tanto? 
— Um sorriso sem loucura 
d'uma tristeza sem pranto!» — 



VI 



Tal canta o pobre! e, sobre o chão curvado, 
colhe o legado que o Senhor lhe deu; 
e a cruz adora sobranceira erguida 
como a avenida que o conduz ao ceo! 



Março de 1854. 



CONSUMMATUM EST! 



Filhos de Christo, consummou-se agora 
o horrendo crime d'Israel, na cruz, 
Trémula se abre a terra! o sol descora! 
a Igreja chora, que morreu Jesus! 

Levanta o soterrado a lousa dura! 
do Templo augusto se espedaça o veo! 
noite completa negrejou na altura! 
densa negrura nos esconde o ceo! 



14 



Cumpriram-se as profecias! 
Entre affrontas e agonias 
troa da morte o pregão! 
Compungida a natureza 
veste os crepes da tristeza! 
pára d'assombro o Jordão! 
Rei, pobre, escravo, pranteia! 
lava-te em prantos, Judeia! 
chora, perdida Sião! 

Quem deu luz a vossos olhos 
por que vísseis os escolhos 
da vida, olhae... já não vêí... 
Quem deu agua á rocha dura, 
sustento á raça perjura, 
que sempre, sempre descrê, 
morreu no Calvário exangue, 
para vos lavar com sangue 
as nódoas da vossa fé! 

Nem o canto dlsaias, 
nem a dor de Jeremias, 
te lembrou, Jerusalém! 
nem foste pedir conselho 
ás aguas do Mar-Vermelho, 
nem ás ruas de Salem, 
nem ás torpes Madianitas, 
nem aos falsos Gabaonitas, 
nem ao sangue de Sichemt 



15 

Não te serviram de guia 
as pedras da Samaria, 
o castigo de Core, 
a Arca santa da alliança, 
a soberana pujança 
do braço de Josué, 
nem Dalila, a má serpente, 
nem a serena corrente 
da fonte de Bersabél 

Pois de Saul a inclemência, 
de David a penitencia, 
de Salomão o saber, 
d'Absalão as concubinas, 
do Templo as vastas ruinas, 
os magos olhos d'Esther, 
não te arrancaram a venda 
da tua cegueira horrenda? 
não te fizeram tremer?!... 

Tantos annos de tormentos, 
tantos fieis monumentos 
na terra como nos ceos, 
não dizem que o Nazareno, 
tão forte, e sábio, e sereno, 
era o Messias dos teus? 
Pergunta ao fiel Caleb, 
pergunta á sarça do Horeb, 
pergunta se elle era um Deus! 



16 



D'Isaac pergunta á esposa, 
pergunta a Lia chorosa, 
pergunta á casta Rachel; 
pergunta á formosa Dina, 
ante a qual um rei se inclinai 
ouve as filhas de Raguel, 
ouve Débora aguerrida! 
pergunta ao prego homicida 
da forte, heróica Jahel! 

De Moysés pergunta á vara, 
pergunta ás penas de Sara, 
e aos mil desprezos d'Agar! 
vae de Geth ás sepulturas, 
vae do Thabor ás alturas, 
vae a Tharé perguntar! 
vê Chanaan, vê o Egypto! 
e has de achar seu nome escripto 
no ceo, na terra, e no mar! 

Que breve são esquecidos 
os Lázaros resurgidos 
da ingrata Jerusalém! 
allivios de tantas penas! 
vosso amor, ó Magdalenasf 
os pastores de Bethlemí 
e essa estrella peregrina 
que o berço de Deus ensina 
aos Magos que adorar vem! 



17 



Ail tu perdeste a memoria 
das profecias, da historia, 
madrasta sem coração! 
mas, de sangue salpicados, 
serão teus áridos prados 
espelho de maldição! 
teus montes não terão selvas; 
teus plainos,— flores, nem relvas, 
lethal, estéril Sião! 

Como d'arbustos damninhos, 
colherás somente espinhos 
das rosas de Jerichóí 
verão séculos inteiros 
em toda a terra estrangeiros 
os maus filhos de Jacob! 
embora ao ceo, que te esmaga, 
peça perdão cada chaga 
do manso, divino Job! 

Ai de ti! que penitencia 
poderá ganhar clemência 
para o teu povo, Israel? 
Idolatra, má, perjura— 
desde Putiphar, a impura, 
desde a corrupta Babel! 
Altiva, ingrata, descrente— 
desde o Horeb e a sarça ardente, 
de sempre a sempre, cruel! 



18 



Um sepulchro dilatado 
nas ondas do mar anciado 
abysma o Egypto oppressor! 
De Hemor culpada a cidade 
paga em sangue a castidade 
d'uma virgem do Senhor! 
Nas faldas do monte santo 
custa um crime longo pranto, 
muito sangue, e muita dorl 



Pelo ultrage dos Levitas, 

o crime dos Benjamitas 

faz o espanto de Judá! 

De Babylonia a torpeza 

cresce e reina em torno á meza... 

junto á meza a morte está! 

Tu... mais que todas perdida, 

a tua sorte, deicida, 

que sorte horrenda será?!... 



Perdoa, Christo, se uma dôr mundana 
vem fallar de castigos n'este dial 
Tu bebeste por toda a humanidade 

o cálix da agonia! 



19 



No tristonho Jardim das oliveiras 
(tu só velavas, tudo o mais dormiaf) 
eu vi-te aproximar dos lábios trémulos 
o cálix da agonia! 



O amargoso do fel te lacerava 
fibra por fibra! a dor te consumia! 
6 lavaste com prantos mais amargos 
o cálix da agonia! 



Pois quem se vinga? o homem! Deus... perdoa. 

Só a vontade humana se entibia 

da morte nos umbraes; só Deus acceita 



o cálix da agonia! 



Nós somos d'Israel filhos impuros, 
cegos á luz do sol em pleno dia! 
Tarde a venda caiu, mais tarde o pranto 
pela tua agonia! 

Senhor! tu que lançaste olhos bondosos 
ao discípulo vil que te vendia, 
oh! salva os desterrados filhos d'Eva 
pela tua agonia! 



20 



Na eminência do Calvário 
morreu de Deus o cordeirof 
e o soluço derradeiro 
foi o perdão de Jesusl 
Treme em seus eixos a terra, 
que nos parece tamanha 
e é fraquíssima peanha 
para suster uma cruz! 



Duma dor sem semelhante 
a triste Mãe traspassada, 
cai na terra ensanguentada, 
e ao pé da cruz se abraçoul 
Nos olhos tem tal angustia, 
nos lábios tanta meiguice, 
que o anjo puro que disse 
— Ave Maria — chorouf 



Tudo está concluído, 
segundo vós, profetas de Sião! 

O Verbo eil-o cumprido: — 
os prodígios! o crime!... a redempção! 

Parada de Gonta, 1859. 



STABAT MATER 



Brancas ossadas, sangue, e rochas duras, 
onde nem cresce o musgo das ruinas, 

nem passa a viração! 
onde não contam aves peregrinas 
seus segredos d'amores e ternuras 

aos ecos da soidãot 

cerro de maldição, furnas perdidas, 
onde abutres, só, vem á meia noite 

ao pútrido festiml 
throno para quem foi do mundo açoite! 
pedestal para estatuas de homicidas, 

de Nero, de Caim! 



22 

mal hajas, ó Calvário!— D'essa agrura 
nas erriçadas pedras ha momentos 

se arrastava uma cruzl 
levava-a um semi-morto a passos lentos; 
e, após os mil horrores da amargura, 

nella morreu Jesus! 



Emquanto lá por baixo em festins ledos 
no tripudio febril de cem orgias 

folga Jerusalém, 
os restos sacrosantos do Messias, 
sentinella perdida entre rochedos, 

guarda a chorosa Mãe! 

Fugi de junto d'ella, almas descrentes! 
não maculeis a dor da Virgem bellaí 

Não tendes dó? passaeí 
Mães desgraçadas, pranteae com ella! 
Órfãos, pobres, meninos innocentes, 

é vossa Mãe! chorae! 

Guarda no seio o cofre dos amores; 
por c'rôa tem o iris da bonança; 

nos lábios, o perdão! 
Ai! quem recolhe a pomba da alliança, 
que anda cançada sobre um mar de dores 

pedindo um coração?! 



23 



Ningem? ninguém, Virgem pura, 
estrelía cTalva chorosa, 
pomba de meiga candura, 
rainha cTanjos mimosal 
Ningueml Na soidão cruel 
em que ficaste, mesquinha, 
emquanto choras sósinha, 
folga a deicida Israel! 



Hoje... hoje, tumulto e festa 
n'essa cidade maldita! 
amanhã, viuvez funesta 
na Babylonia incontrita! 
que nas bodas de Cana, 
onde houve tanta alegria, 
já falta a Virgem Maria, 
já falta o Deus de Judá! 



Se na amargura d'est'hora 
não achas um peito amigo, 
dá-me os meus prantos, Senhora, 
que eu quero chorar comtigo. 
Da ingrata Jerusalém 
sou reo de morte, é verdade; 
mas, Virgem da soledade, 
eu sou teu filho também! 



24 

Ao ver-te a face anuviada 

• 

de tantas, de tantas dores, 
ante a forma regelada 
do teu filho, teus amores, 
co'as azas brancas da fé 
percorri mundos inteiros! 
trago-le muitos romeiros, 
ó Virgem de Nazarethl 



Cheguei-me á porta dos vivos 
dos encantos que os algemam 
os ricos vivem captivos, 
os desgraçados blasphemam! 
Fui-me os mortos evocar; 
e os sepulcros, condoídos 
d'escutar os teus gemidos, 
se abriram de par em par! 



Aqui tens santas imagens 
da dor e do desconforto; 
naufragaram nas paragens 
do oceano que não tem porto! 
Se é maior tua afflicção, 
se não padeceram tanto, 
ai! desfez-se-lhes em pranto 
a seiva do coração! 



25 



Aqui tens Eva, a coitada! 
tio bella, e tão desditosa! 
tão amante, e tão amada! 
tão pobre, e tão criminosa! 
No seu martyrio cruel 
chora em profunda amargura 
do seu peccado a negrura, 
saudades do seu Abel! 



Vem, A gari escrava... embora! 
mãe que padeceste horrores! 
neste logar e nesfhora 
não ha servos, nem senhores! 
Nos ermos de Bersabé 
fugiu-te a luz dos teus olhos! 
tinhas um cento d'abrolhos 
nas chagas de cada pé! 



Em vão buscavas torrentes 
na aridez d'aquelle monte... 
em vão! teus prantos ardentes 
tinhas por única fonte! 
mas o teu caro Ismael 
achou cristallinas aguas; 
e o Martyr de tantas maguas 
teve uma esponja... de fel! 



26 



Velho das barbas de neve, 
Abrahâo, lembras-te, valente, 
de quem te o golpe deteve 
sobre o teu filho innocente? 
Ahi tens a Mâe de Jesus, 
sem ventura e sem fastígio! 
Quem obrou tanto prodígio 
foi seu filho).. . olha essa cruzf 



Quasi do sepulcro ás bordas, 
teus prantos, tua agonia, 
Jacob, se ainda os recordas, 
pranteia a dor de Maria! 
Deus, que ao teu casto José 
cobriu de palmas no Egypto, 
morreu corrido e proscripto 
entre e seu povo sem fé! 



Triste hebréa, obscura e pobre* 
sobe a encosta do Calvário! 
tens um logar muito nobre 
neste adjunto funerário! 
a Virgem sabe quem és, 
conhece o triste sigillo 
de quando entregaste ao Nila 
o berço do teu Moysés! 



27 



Jephte, que em troca da gloria 
a casta filha condemnas, 
nunca se comprou victoria 
á custa de tantas penas! 
Na manhã do seu abril 
(má jura que tu juraste!) 
infeliz pae, que ceifaste 
de Maspha a rosa gentil! 



— «Quem és tu, vulto gigante, 
de rei e fronte c'roada, 
na dextra espada brilhante, 
e na sestra harpa doirada?!» 
— «Eu sou J)avid, o cantor, 
o monarchá penitente, 
rei, opulento, indigente, 
a gloria, o remorso, a dor! 



Dâ negra sorte aos rigores 
nunca ninguém chorou tanto! 
Senhora Virgem das dores, 
venho offertar-te o meu pranto! 
A alva, o occaso, o norte, e o sul, 
o rio, o valle, a montanha, 
me viram curvado á sanha 
feroz do ingrato Saul. 



28 



A dor que o peito consome 
ninguém calcula, nem mede: 
chorei de frio, e de fome, 
e de cansaço, e de sede; 
e sempre em cada manha 
eu pedia a Deus o esquife, 
ou nos (Jesertos de Ziphe, 
ou nas covas d'OdolIam. 



D'Urias pranteei a sorte; 
d'Isboseth... tarde, bem tarde, 
chorei a aleivosa morte!... 
forte, o amor fez-me covarde! 
Por mim, por Bethesabé, 
nosso amor, nossas maldades, 
carpi! chorei de saudades 
nos montes de Gelboé! 



Fui pae,.comprehendo os teus prantos; 
perdi meu filho, Senhora! 
do amor paterno os encantos 
vê se os eu choro inda agora! 
Minhas cans, meu coração, 
cobriu de vergonha infinda; 
mas eu morreria ainda 
pelo meu filho Absalão!» — 



29 



Vem também, Respha piedosa, 
que os filhos que conceberas 
por seis mezes lagrimosa 
furtas aos corvos e ás feras! 
Venham as mães (Tlsrael, 
as viuvas da Judeia, 
de Sarephta, a Chananêa, 
a Sunamitis, Rachel) 



Á Virgem prestae confortos; 
na sua dor confundi-vos! 
haja um cortejo de mortos 
para vergonha dos vivos! 
Lá em baixo, n'esse festim 
de tão sinistro ruido, 
ha de estar Jairo esquecido, 
e a viuva de Naim. 



Lá em baixo, risos e cantos 
por entre os fumos da orgia; 
aqui... soluços e prantos 
nas convulsões da agonia!... 
Do mundo não vem ninguém 
ás solidões do Calvário! 
Chorae, sombras, no sacrário 
do seio da virgem Mãe!... 



30 



Virgem das Dores, na soidão chorosa! 
pomba formosa, inconsolável, sói 
só, n'esta magua, e soluçando tanto! 
só com teu pranto... e sem ninguém ter dót 



Se, reo de morte d'Israel perdida, 
arrasto a vida encarcerado aqui, 
lá nos teus reinos d'uma eterna aurora 
lembra, Senhora, que chorei por ti! 



Parada de Gonta, 2 cVabril de 1860. 



JESUS 



Jesus antera, emissa você magna, expiravit. 



Se as flores do pomar vestissem luto, 
e se as aves do ceo vertessem prantos, 
cultos houvera Deus puros e santos, 
neste dia solemne, ao pé da cruz; 
o coração de pedra, o rosto enxuto, 
o rir do scepticismo, a voz blasphema, 
não viera insultar o santo emblema 
regado pelo sangue de Jesus. 



32 



Um dia houve, um dia só... sangrento! 
Quando a Hóstia d'amor perdeu a vida, 
teve a solemne marcha interrompida, 
num momento d'horror, a criação! 
o sol cobriu seu rosto macilentol 
deu toda em coro a natureza um grito! 
atraz um passo recuou o infinito 
ao ver o crime da infiel Sião! 



Hoje, este riso que nos veste o rosto, 
hoje, este bronze que nos toma o seio, 
esta indiffrença que do inferno veiu 
seccar os prantos, insultar o amor; 
todo este mundo por tuas mãos composto: 
a ave, o prado que floresce e exulta, 
a fera, o homem, — não verá que insulta 
um pae que morre, em sua extrema dor?! 



Jesus, descerra os teus olhos! 
vê, vê teus filhos sem norte! 
Por essa c'rôa d'abrolhos 
enlaçada em teus cabellos, 
quebra as algemas da morte! 
descerra os teus olhos bellos! 



33 

Ó sentinella perdida! 
da atalaya do teu lenho 
vigia a grey pervertida! 
olha este cahos sem luz, 
chama o disperso rebanho, 
abre os teus olhos, Jesus! 



Olha esta Babilónia, em tantas linguas 

dispersa, confundida! 
pedindo pão, e semeando abrolhos, 
pedindo leis, e barateando a vida, 
pedindo paz, e incendiando a guerra, 
e tentando prender nas mãos de lodo 
o mar, os ceos, e a terra! 



Olha esta nova Judeia, 
onde é Calvário a Tarpeia, 
e Roma, Jerusalém; 
onde o teu Pio Vigário, 
expulso do santuário, 
já vai do Pretório além, 
e a turba que ali vagueia 
em torno do seu palácio 
é Galileia do Lacio 
que a ver o martyrio vem! 



34 



Nus os pés, e semi-morto, 
a esp'rança posta nos ceos, 
transpoz o pórtico horrendo 
d'esse congresso tremendo 
de Scribas e Phariseus 
brazonados de christãos! 
e ali, por medo d' Augusto, 
novos tímidos Pilatos, 
traidores á sua crença, 
lavram da morte a sentença, 
lavando as tremulas mãos! 

Mas tu, Jesus, podes tudol 
do teu Vigário tem dói 
solta a lingua d'este mudol 
esmalta o chão dos abrolhos! 
dissipa a nuvem dos olhos, 
do cego de Jerichó! 

Engasta no ceo de Roma 
a estrella maga dos Magos! 
converte eto urnas d'aroma 
os antros prenhes d'estragos 
de seus repletos paioes! 
Traz'-lhe á perdida memoria 
que as tuas armas são cruzes; 
que espadas, lanças, e obuzes, 
nem servem aos teus heroes, 
nem são para a tua gloria! 



35 



Dize ao Lazaro que sufja 
da sepultura em que jaz, 
que troque o saial da guerra 
pela estamenha da paz! 
que deixe aos reis essa gloria 
de se matarem sem dó, 
sendo o premio da victoria 
mais alguns metros... de pó. 

Se os braços cultos da Europa 
lá entre os bárbaros chins 
devastam, roubam, e queimam 
palácios, templos, jardins, 
se, além, a Polónia geme, 
da Rússia ao mando feroz, 
se a Hungria braceja e freme 
sob o cutello do algoz, 
se á pobre da Irlanda presa 
a Inglaterra tyranniza, 
e se a Áustria manda em Veneza, 
e a França em Sabóia e Niza, 
se contra as briosas Quinas 
se empina o Leão de Hespanha, 
como em eras que lá vão 
contra Aragão e Sevilha, 
tome Roma e não ruínas 
a ovante cruz da Sardenha! 
não vá de Christo o Vigário 
macular o seu santuário 



36 



por um ignóbil quinhão 
de tão iníqua partilha! 



Jesus crucificado, abre os teus olhos 

do alto d'essa cruz! 
d'esta nova Babel salva-nos todos! 

acode-nos, Jesus! 

Neste dia solemne em que as cidades 

só deviam chorar, 
ferve em ódios o mundo; e passa o homem 

sem ver o teu penar! 

Do norte ao sul, da Assyria ao Novo-mundo> 

no dia da afflicção 
a voz d'alarma só responde aos psalmos 

do santuário christão! 

Se o florido pomar vestisse luto, 

soubera a tua dor! 
e se as aves do ceo vertessem prantos, 

choravam-te, Senhor! 

O homem perde as crenças, como perde 

as flores um Jardim!... 
Em se finando a derradeira crença, 

que ficará por fim?!... 



37 

Jesus! se o mundo se agita, 
dá-me descanço, Jesus! 
faz'-me grama parasita 
encostada ao pé da cruz. 

Faz'-me insecto da ramada 
que ninguém vê na amplidão; 
quero, i sombra do meu nada, 
perder-me na solidão. 

Faze-me fonte na serra 
que ninguém bebe, nem vê; 
tira-me os mimos da terra, 
mas dá-me as crenças e a fé! 

Que eu sinta sempre o teu nome 
misturar-se aos prantos meus; 
que eu possa morrer de fome 
abençoando-te, ó Deus! 



Sexta- feira Santa, 29 de março de 1861. 



II 



ROSAS PALLTOAS 



n 



ROSAS PALLIDAS 



A MEU PAE 



A ti, meu pae, as minhas Rosas pallidas; 
não tenho mais que te offertar no mundo, 
Distinctos ais! esmorecidos cânticos!... 
mesquinha paga ao teu amor tão fundo! 

Sempre em teus olhos me sorriram júbilos; 
sempre os teus braços me acolheram francos! 
Se alguma c'rôa me destina a gloria, 
cinge com ella os teus cabellos brancos. 



/ 



LE ROI EST MORTl-VIVE LE ROI! 



Na corte do rei vivo o lugar nobre 
pertence ás ambições, ás excellencias, 

ás honras, á vaidade. 
Do rei morto no fúnebre cortejo 
o povo tem' brazões, e as preeminências 

decretadas a saudade. 



44 



Quero pois vir ás festas do sepulchro 
cTaquelle que as saudades nos roubaram 

da vida no verdor. 
Pago meu preito á morta magestade; 
ultimo sou talvez dos que choraram, 

não ultimo na dor. 



Tomou-me o pasmo a voz, quando de luto 
vi toda uma nação, muda, em quebranto, 

ao pé d'um ataúde. 
Quie perguntar. .. cerraram-se-me os lábios; 
o coração negou-me os ais e o pranto; 

os sons, o alaúde. 



Julguei que um génio mau co'as azas negras 
em sonho delirante me assombrava 

pairando sobre mim; 
e que o braço marmóreo d' um gigante, 
sobre o peito poisado, me esmagava... 

Mas acordei por fim!... 

Não era sonho: a verdade 
era ante mim assentada, 
dura, cruel, sem piedade, 
toda de crepe vestida, 
mostrando na mão mirrada 
a c'rôa real partida! 



45 

Não era sonho o cortejo, 
e o rouco som dos obuzes 
das fortalezas do Tejo, 
núncios de tantos martyrios, 
nem as mil pallidas luzes 
das longas alas de círios! 



Nao era sonho a saudade 
que um povo leal, inteiro, 
na miséria da orfandade 
em longo clamor carpia, 
sobre o asilo derradeiro 
onde seu pae se escondia! 



Não era sonho! tão moço, 
partiu-se de magua dura 
esse coração tão nossol 
e, na estação dos amores, 
quando todos têm ventura, 
teve elle da campa as flores! 

Era uma sina! a desdita 
tinha-lhe a vida algemado; 
como a silva parasita, 
que ficou preza na leiva, 
se enrosca ao roble copado 
roubando-lbe sombra e seiva, 



46 



"Um dia, a regia criança 
perde o materno carinho; 
íbge-lhe a pomba da esp'rança, 
que era a imagem da virtude, 
e el-rei fica tão sósinho 
entre a c'rôa e o ataúdel... 



A alva flor da laranjeira, 
que era na trança enlaçada 
da regia esposa fagueira, 
enlevo de povo e noivos, 
caiu no chão transformada 
em tristes, gélidos goivos. 



Immerso em tanta orfandade, 
ao ceo levantava os olhosl... 
homem, lá tinha a saudade! 
rei, não podia ter prantos!... 
Aif que cilicio d'abrolhos, 
que eram tão duros e tantosl 

E o cálix não era enxuto! 
Por complemento de maguas, 
vem sobre o luto mais lutol 
as tão queridas infantes 
lá vão por cima das aguas 
viver em terras distantes! 



47 



El-rei foge ao ermo paço 
e ao vozear das cidades: 
busca a fadiga, o cansaço; 
mas, da desgraça no cumulo, 
quando ia matar saudades 
por suas mãos abre um tumulo! 



Que larga historia de dores 
é d'el-rei a curta historial 
O' harpas dos trovadores, 
memorae-lhe a vida em cantos I 
numa epopeia de gloria, 
numa elegia de prantos! 



Vinde, altivos soberanos! 
chorae o vosso modelo 
no velho rei de vinte annos! 
E os que o viram sobranceiro 
aos vagalhões do flagello, 
chorem seu régio enfermeiro! 

Por isso é pezado o luto; 
por isso a pena é martyrio! 
Não se encontra um rosto enxuto 
hoje, logo, no outro dia! 
tornou-se a magua em delírio! 
tudo el-rei nos merecia. 



48 



Por isso a Europa enlutada 
veiu ao fúnebre cortejo 
chorar co'a grey consternada, 
queimar-se nas mesmas fragoas, 
e ás tristes aguas do Tejo 
juntar o pranto das maguas. 



Se do luto as tristes cores 
são, das cortes na pujança, 
prova d'affectos e amores, 
os signaes de penitencia 
eram na corte da França 
encargos de consciência. 



O mundo aprecia e aponta 
num logar d'honra na historia, 
tarda embora, a desaffronta. 
Das Tulherias o pranto 
vinga d'el-rei a memoria, 
e a nação que o chora tanto. 



E' morto el-reií Nas sombras do futuro 
que novas eras guarda o tempo á grey? 
Deus dê descanço eterno ao rei finado, 
e bênçãos, paz, e gloria, ao novo reif 



AVE, LABOR! 



A» CIDADB IISTVICTA. 



(Poesia apresentada pela Imprensa KacioDâl, de Lisboa, na Exposição do Porto) 



Porto, que viste o fogo, o sangue, e os lutos, 
que formaram cortejo ao novo sólio 

da augusta liberdade, 
da arvore que plantaste colhe os fructos, 
tu, que lhe foste berço e capitólio, 
sempre leal cidadet 



50 



Tu, que a viste nascer, surdir do abysmo, 
entre o immenso fragor de cem batalhas 

na fratricida guerra, 
deste-lhe: sangue e fogo— por baptismo! 
por c'rôa— o teu diadema de muralhas! 

por throno — a altiva Serra! 



Faltava a sagração:— dás-lhe hoje o templo! 
Romeiros liberaes, vinde ao festejo 

do trabalhar fecundo! 
para todos ha culto, e gloria, e exemplo; 
a Industria espera em festival cortejo 

a pátria, a Europa, o mundo! 



Nova cruzada os povos chama á gloria; 
nova Jerusalém convida em brados 

para novas conquistas; 
cantará a epopeia a incruenta historia 
de melhores heroes; nomes laureados 

âHndustriaes e artistas, 

dos que ao diurno labor o braço alteiam, 
e que, após o serão, sonham co'a vinda 

da preguiçosa aurora; 
d'esses em cujas frontes se incendeiam 
diamantes de suor; c'rôa a mais linda 

que a mão de Deus inflora! 



51 



"Vinde, que é Deus aqui 1 só d'elle ao nuto 
surgem de tanta gloria estes fastígios. 

Quer Deus que lhe consagres: 
tuas flores,— jardim; pomar, — teu fruto; 
industrias, artes, — vossos mil prodígios; 

sciencia, — os teus milagres. 



À Imprensa vem á festa! nem podia, 
mestra d'exemplos, recusar o exemplo. 

A hóstia é do sacrário; 
o apostolo, do mundo; o sol, do dia; 
o verbo, da doutrina; o altar, do templo; 

do altar, o lampadário. 



Do templo do trabalho é hóstia, verbo, 
sacrário, luz, sacerdotisa, a Imprensa, 

a mãe da liberdade, 
<jue ampara o génio em seu trabalho acerbo, 
^ abarca as eras em sua esfera immensa, 

prendendo idade a idade. 

Dissera Deus ao sol: —«Surge, e alumia !» — 
e illuminou-se o valle, o monte, o albergue, 

o fructo, a flor, as palmas 1 
mas do espirito a luz?!... Chegara o dia: 
o seu fiat, emflm, diz Guttemberg, 

e fez-se o sol das almas! 

5 



52 

A Imprensa é, pois, no templo. Entre os primeiros 
tomando o seu logar junto ao sacrário, 

proclama á sociedade: 
— «A' festa universal I entrae, romeiros l 
abre as portas, Industria, ao teu santuário ! 

Preside a Liberdade /» — 



NO ÁLBUM DE ÀRTHUR NAPOLEÃO 



(no reverso da primeira pagina, em que se achava esgripta 

a seguinte carta:) 



Sr. Thoraaz Ribeiro: — Rogo a v. que seja interprete 
da admiração que eu consagro ao talento d'Arthur Napo- 
leão. V. tem ouvido que eu por muitas vezes tenho sus- 
tentado em publico, tanto quanto posso e quanto sei, 
aquelle preito que se deve a uma gloria da nossa terra; e 
mais sabe que eu estudo e trabalho para que a minha re- 
citação não possa occultar as esplendidas imagens qce o 
autor derrama nos seus escriptos. Portanto, diga a Ar- 
thur Napoleão que nos applausos que merece o seu ta- 
lento e nobre trabalho vão também os modestos elogios 
de 



Maria do Geo da Silva Mendes, 



Lisboa, 4 de maio. 



54 



Que queres tu de mim? Chamaste-me, senhora, 
do ceo da minha Beira estrella a mais fulgente ? 
Que eu suppra a tua voz ?!.... Pois tu, canção da aurora, 
precisas do meu canto a musica plangente ? 



Tu és o rouxinol; eu, rola que se queixa; 
tu'alma vôa e canta; a minha chora e dece; 
tu és o hymno altivo; eu, a singela endecha I 
tu és o amor e o mando; eu, a saudade e a prece. 



Tu és a primavera; o outomno eu sou... sem fruto; 
tu és a luz, e eu, sombra; és harmonia; eu eco; 
tu és o lyrio branco; e eu, lyrio, com meu luto, 
sou junto a ti... cypreste esmorecido, seccol 



Eu fui, talvez, cantor; poeta és tu, que o leio 
em teu formoso olhar, tão scismador, tão vago ! 
és cysne em lago ameno a refrescar teu seio; 
eu sou a junca humilde a sombrear-te o lago! 



Senhora, o génio é rei, e a formosura, esquiva; 
tu és rainha, e vens, co'a fronte coroada, 
dar-me, tremendo, a mão, modesta sensitiva!... 
És mais formosa assim ! não és rainha, és fada ! 



55 



Nunca me ergueu tão alto a caprichosa sorte f 
Ao génio, teu irmão, queres mandar um voto, 
e eu, plenipotenciário, hei de ir de corte a corte?!.. 
Irei, que o mandas tu ! irei ao mundo ignoto f 



irei ao templo augusto, ao vosso capitólio, 
onde o laurel e o throno é feudo de conquista í 
e, após depor a offrenda, e, após do augusto sólio 
ter os degraus descido, eu lhe direi: 

— «Artista f 



abre esse livro, e vê na pagina primeira 

o que é dar culto ao génio, o que é dar preito á gloria f 

A sorte é-te propiciai a fada é-te fagueira ! 

e é mais que o dom dos reis ficar-lhe na memoria !» — 



Cumprido o voto assim, despede-me, senhora, 
do ceo da minha Beira estrella tão fulgente I 
Adeus, irmãos no génio, e ambos canções da aurora, 
que eu volto ao meu sol-posto, e á musica plangente f 



Lisboa 5 de maio de 1866. 



A FESTA E A CARIDADE 



{composta expressamente para ser recitada pelo actor santos 

no theatro de d. maria segunda 

por occasião do beneficio 

da associação protectora da infância indigente) 



Qui donne aux pauvres, prête à Dieu* 
V. Hugo. 



Para uns, abre o ceo manhã de flores; 
meio-dia de fructos e doçuras; 
tarde d'encantos mil; noite d'amores; 
sonhos de gloria, affectos, e venturas. 



Para outros, as noites não têm lua; 
o sol é sem calor; o ar, sem perfume: 
o leito... sem enxerga ! a meza... nua t 
os armários... sem pão I o lar... sem lume !.., 



58 



Eis o quadro da vida: entre matizes, 
o grupo dos mimosos da existência; 
a lida, ao pé, morgado d'infelizes; 
e, por fundo, os andrajos da indigência f 



Do pobre ao rico ha distancias 
cortadas por muito abysmo, 
que a sorte, ou, quem sabe ? o egoísmo 
(Tespaço a espaço afundou. 
Salva-as com aéreos passos 
meiga virgem da piedade; 
chamou-ihe Deus Caridade, 
e o mundo o nome exalçou. 



Á noite, a virgem modesta, 
a casta filha de Deus, 
furta-se aos hymnos da festa, 
e, envolta em cândidos veos. 



desce a escada sumptuosa; 
mãe aos maus, irmã dos bons> 
lá vai levar, carinhosa, 
a toda a parte os seus dons: 



59 



Aqui, perfuma, suavisa, 
como a aragem matinal, 
velho que triste agonisa 
na enxerga cPum hospital. 



Sai; busca afflicta viuva 
na sobre-loja sombria, 
e aquece na mao sem luva 
mao pobre, engelhada, e fria. 



D'ali, sobe a estreita escada, 
são-lhe guia afflictos ais, 
e encontra na agua-furtada 
filhos nus, famintos pães; 



e leva esmola e carinho 
ao casal desventurado, 
que foi armar o seu ninho 
entre os musgos d'iim telhado; 



imitando o que entre flores 
faz o amante rouxinol, 
que só conta os seus amores 
á noite, ás auras, e ao sol. 



60 

Onde assoma o transparente 
sendal da cândida fada, 
tudo é formoso e ridente 
como os prismas da alvorada: 



as rugas caem das frontes; 
os prantos fogem dos olhos; 
as rochas abrem-se em fontes; 
brotam lyrios dos abrolhos. 



Se descerra os purpurinos 
lábios de finos rubis, ' 
suas palavras são hymnos 
que Deus acceita e bemdiz ! 



Crôa de mysticas flores 
lhe entretece a loira trança; 
nos olhos riem-lhe amores; 
n'alma, a fé; no seio a espVança, 



E quando emfim desparece 
aos infelizes da terra, 
e, após a nocturna prece, 
poisa a face, e os olhos cerra, 



61 



velam-lbe o leito os carinhos 
que ella deu a tanta dor; 
as preces dos pobresinhos; 
e, á cabeceira, o Senhor ! 



E pois que vos disse qual seja a virtude 
mais bella e querida na terra e na gloria, 
deixae-me contar- vos, ao som do alaúde, 
um só dos seus feitos que vivem na historia: 



No tempo em que passou no mundo esse terrível 
Napoleão, — o heroc ! o immenso f o incomprehensivel ! 
o anjo do extermínio f o raio ! o deus da guerra, 
que enriquecia a França empobrecendo a terra, — 
um arcebispo, um velho... um santo, era pastor 
d'almas que apascentava aos olhos do Senhor ! 



Faminto era o rebanho, estéril a campina, 
e á beira-mar o aprisco, — a igreja. 



Era divina 
a missão do bom velho ! Oh ! sim ! mas que tormento 
para o triste pastor ouvir balar o armento ! 



62 



queimada a urze ao monte, as relvas aos valleiros ! 
sem alimento as mães ! sem leite os seus cordeiros !.., 
Deu-lhe o quanto podia: a prece, a espYança, o pão, 
tudo o que lhe escogita o honrado coração ! 
e, quando achou vazia a sua mão tão nobre, 
julgou-se mais ditoso: era o primeiro pobre !... 



Uma noite o bom velho acorda antes da aurora ! 
rumor sinistro o esperta !... 



— «Ai, Deus ! pois lá por fora 
anda a chorar disperso o meu rebanho, e em risco ?!... 
Quem sabe, ó Deus, se o lobo entrou no manso aprisco?! 
Acode-lhe, Senhor !...» — 



Corre para a janella... 
abre... espreita... No ar não luz nem uma estrella ! 
O eco negro a poisar nos tectos da cidade, 
raios a mil e mil rasgando a escuridade, 
os roncos do trovão, e o sibilar do vento, 
um cahos revoltoso o mar e o firmamento, 
foi tudo quanto viu, e ouviu ! 

Cheio d'horror, 
eleva o pensamento ao Deus do eterno amor, 
e cai. 



63 



Horas depois, os raios da alvorada 
foram beijar-lhe a fronte, altiva, e tão sulcada 
pelo minar do estudo e o reflectir da idade. 



O vento adormeceu; caíra a tempestade. 
Ergue-se, e da janella... 



Ai I que montão d'horrores l 
Falta na praia um bairro ! Os pobres pescadores 
lá viram perecer nas ondas do seu mar, 
muitos, a própria vida f outros, o barco e o lar l 



Empenha a cruz e o annel; e o triste bando implume 

teve naquelle dia abrigo, e pão, e lume. 

Mas... no seguinte, o almoço?! embora fosse parco ! 

e construir-lhe um ninho ?! e dar-lhe a rede e o barco ?!... 

Nisto pensava á noite o homem do Senhor, 

co'os olhos rasos d'agua, immerso em negra dor t 

Elie, tão pobre e velho I... A quem pedir sustento?!... 



64 



A ponto, uns sons cTorchestra entraram no aposento !.. 
Ouviu... pasmou!... 



— «Meu Deus ! em noite assim funesta* 
quando a miséria chora, os hymnos d'uma festa !...» — 



Medita longo lempo I... Após, como se a chamma 
do alto o illuminasse, humilde ajoelha, e exclama: 



— «Meu Deus, que ouviste a prece ao pobre peccadorf 
comprehendo o teu decreto, entendo-te, Senhor ! 
Ha baile na cidade t a musica nvo attesta !... 
Falta-me o annel e a cruz f... embora 1 hei de ir á festa!» — 



É meia noite. No baile 
esplende inteira a alegria, 
luzes, flores, e harmonia, 
brilham na fausta mansão. 
IrtÔanima-se o jogo e a dança; 
receadem tnais os perfumes; 
ardem mais vivos os lumes; 
pulsa miais o coração. 



65 



Reina o prazer f... Mas a orchestra 
destoa, pára, emmudece ! 
o enthusiasmo arrefece, 
e o redemoinho... parou ! 
Ninguém mais a voz levanta í 
reina um silencio agoireiro ! 
Corre ao fundo o reposteiro, 
e o velho arcebispo entrou. 



Todas as frontes se acurvam 
ante o pastor venerado, 
que ao seu báculo encostado 
percorre lento o salão. 
Todos acorrem ás bênçãos 
que elle aos dois lados envia, 
e têm por d' alta valia 
beijar-lhe a rugosa mão. 



Chega á dona do palácio, 
que estava immovel, absorta, 
regelada, semi-morta, 
perante o vulto fatal. 
Para ella, o santo velho 
era um remorso que entrava 
no seu baile, e que a buscava 
hirto, livido, mortal I 



66 

• ••■...■••.a. 

O velho quebra o silencio: 
— «Em noite de tanta dita 
se vos faço uma visita 
importuna, perdoae ! 
Na vossa casa, senhora, 
tendes festa, á festa venho; 
e nunca parece estranho 
que os filhos visite um pae. 



Sabeis o que vai lá fora ? 
contraste dos vossos brilhos, 
tenho um rebanho de filhos, 
chorosos, famintos, nus.! 
deixei-os no meu albergue; 
ia... nem sei para onde ia ! 
da vossa festa a harmonia 
aqui meus passos conduz. 



Encostae-vos ao meu braço; 
tomae-me esta bolsa: agora 
vamos mendigar, senhora, 
erguendo supplices mãos: 
— Pelo amor de Deus, senhores ! 
esmola, ricos e nobres ! 
esmola aos meus filhos pobres ! 
esmola aos vossos irmãos !» — 



67 



Diz; e a turba dos convivas 
foi pressurosa á porfia 
dar quanto ali possuía, 
e prometter mais e maisf 
As damas, dos seus enfeites 
arrancam oiro e brilhantes, 
braceletes e diamantes, 
anneis, perlas, e coraes. 

O velho, chorando e rindo, 
exclamou: 

— «Estes penhores 
heis de havel-os, meus senhores, 
com largos juros nos ceosl 
Vós, minhas cândidas filhas, 
ficais assim mais formosas: 
para rosas bastam rosas! 
valeis mais ao mundo e a Deus! 

You fazer outros ditosos; 
a minha missão foi esta; 
reviva, recresça a festa! 
folgae, meus filhos, folgae!» — 
Eu digo como o bom velho: 
folgae! que a festa consola 
a quem hoje deu esmola 
a tantos filhos sem pae. 



Lisboa, 14 de novembro de 1862. 

6 



NO ANNIYERSARIO DE JÚLIO DE CASTILHO 



[(WPROFISO) 



É rito nobre coroar poetas: 

o mármore, o painel, taes os conservam, 

fazendo-os immortaes. 
Às c'rôas são diversas: umas vezes 
a dita as entretece d'alvas flores; 

outras, os loireiraes 
offerecem festoes da rama illustre 
para a épica fronte do poeta 

que ergueu altas canções. 



70 



Muitas são de cypreste, e foi, bem sabes, 
de loiros, malmequeres, e saudades, 

a c'rôa de Camões. 
Foi de saudade e myrtos a d'Ovidio; 
d'astros e nuvens a d'Ossian e Homero; 

de parras a de Horácio; 
de raios a de Milton! a Virgilio 
coube a coroa cívica de loiro, 

e flores do seu Lacio. 
A tua... é bem singela: é só de rosas; 
mas teceu-t'a a amisade e o enthusiasmo 

d'ardentes corações; 
a civica ha de vir, crê no futuro. 
Canta, poeta, sem cuidar d'ingratos! 

que assim cantou Camões!. 



Luz, 30d'abrildei863. 



OS MEUS TRINTA AMOS 



(n'um álbum) 



A vida é monte erguido entre dois mares, 
que se avulta nas ondas arrogantes 

do norte para o sul. 
O seu manto, nem sempre é relva e flores; 
o caminho, nem sempre suave e largo; 

o ceo, nem sempre azul. 



72 



Do nascente ao sol-posto sobe a estrada, 
e eu por ella subi; da vida ao cume 

eis-me chegado emflm t 
A fatídica hora dos trinfannos 
no relógio fatal que a vida conta 

soou já para mim. 



Antes (pte eu desça alem, quero da altura 
medir, entre os dois mares, a distancia 

do meu peregrinar; 
quero nestes momentos de repouso 
os dois barcos saudar, que me saúdam, 

neste e naquelle mar: 



Este... conheço-o bem ! era o meu berço í 
baixel em que embarquei do nada á vida, 

ao pê de minha mãe ! 
Naquelle... ergue-se a cruz negra do esquife!. .. 
Hei de embarcar ali da vida ao nada, 

sem me velar ninguém i 



73 



Pedir cantos» senhora, a quem da vida 
perdeu todo o matiz dos róseos sonhos 

d'aurora juvenill... 
não porque a vida me vá longa, ou negra» 
mas porque esfaima é tão deserta e árida 

que nunca teve abril!... 



A vida bonançosa, a paz eterna, 
enerva o coração e o pensamento 

nos braços d'ocios vis. 
O génio nasce e cresce entre as tormentas ! 
Senhora, attenta bem como ha desgraça 

até no ser feliz ! 



A vida sem paixões, sangue sem febre, 
é calmaria d'alma, que vegeta, 

murcha, inodora flor. 
Os gozos fáceis, a ventura plácida, 
são paraiso d'èxistencia inerte; 

mas eu prefiro a dor t 



Prefiro a dor; que essa exalta 
o sentimento, a paixão ! 
se o riso nos lábios falta, 
o pranto nos olhos, não. 







74 



Nem dor, nem riso! ... Eis a calma 
' do morto mar do meu ser f 
Não reverdece uma palma 
na aridez do meu viver ! 



Existo... não sei se existo! 
Sem ter desejos, nem fé!... 
mas, se ao mundo eu disser isto, 
o mundo pasma e nao crê. 



Tu acreditas, que és pura, 
e eu não te posso mentir; 
juro-o por tua candura, 
por teu sincero sorrir. 



Não tenho que dar! Trinfannos 
morrem hoje para mim; 
a idade dos desenganos 
já vês que chegou por fim ! 



Trinfannos que o ócio esconde; 
em que eu nem ri, nem chorei ! 
Trinfannos gastos... aonde? 
em que?... com quem?... nem eu sei!.. 



75 



Subi ao zenith da vida, 
vou prestes descer ao vai; 
na c'rôa da encosta erguida 
cravei o marco fatal I 



Adeus, mocidade, infância, 
que nunca mais hei de ver ! 
Tenho em frente igual distancia.., 
mas é mais fácil descer i 



Além acaba o desterro 
ao infeliz que ali jaz! 
No flm do íngreme cerro 
começa o reino da paz f 



-Avante f — Desço a ladeira 



sem saudade, ou riso, ou dor f 
sem plantar uma palmeira ! 
sem semear uma flor ! 

Bem vês, é safara, ingrata, 
vida sem risos, nem ais f... 
Consigno aqui uma data, 
deixo um nome, e nada mais. 



Lisboa 1 de julho de 1861. 



A MADAME LOTTI DELIA SANTA 



(na noite de seu beneficio * ) 



Quem, no templo da harmonia, 
colhe hoje os loiros e as palmas ? 
quem tem o sceptro das almas ? 
quem, o diadema real ? 
Que fada quebra o repouso 
meditabundo e severo 
d'este patriarcba austero, 
d'este velho Portugal ? 



(*) O producto (Teste benefido foi cedido aos pobres. 



78 



Que fada, que se transforma 
ora em anjo de venturas, * 
ora em fonte d'amarguras, 
que a loucura, ou a morte, dá f 
ora com ducal diadema 
cinge a fronte de Lucrécia f ... 
Que fronte 1 nem mesmo a Grécia 
as viu mais bellas por lá f 



É Lotti, a filha das artes ! 
Lotti, a musa da harmonia ! 
a que possue a magia 
das celestes vibrações ! 
é Lotti, que, dadivosa, 
junto ás festas da grandeza 
quer as bênçãos da pobreza, 
as palmas dos corações ! 



Tu sabes, filha da Itália, 
que em nossas formosas praias 
cresce o loiro, o myrto, as faias, 
qual na terra de teus pães; 
que este ceo também dá génios; 
que este sol tem resplendores; 
que as harpas dos trovadores 
sabem hymnos triunfaes !... 



79 



Salve, Lolti! duas c'rôas 
te enramara a fronte bella: 
uma, é rica; outra, singela; 
mas ambas cTigual condão: 
uma é devida ao teu génio — 
luz d'ethereos esplendores; 
outra é prenda dos amores, 
deve-se ao teu coração. 



E' pobre, que vem dos pobres; 
é simples, mas traz encantos; 
vem orvalhada de prantos, 
mas prantos de quem sorri !... 
Fazer chorar os felizes, 
e sorrir os desgraçados !... 
que fados, Lotti, que fados 
o ceo guardou para ti !... 



Á nobre irmã de Tasso, á bella irmã d'Ariosto, 
ao anjo da harmonia, á musa das canções, 
á que a alma nos enleva, e nos inunda o rosto, 
saúda jubilosa a pátria de Camões ! 



CYPRESTE E ROSAS 



(NO ÁLBUM DA EXM. a SNft.* Ou MARIA CAROLINA BERQUÓ) 



Assim o pedes, senhora I 
um canto triste, tão triste, 
como a saudade que existe 
dentro d'ess'alma que chora, 
quando o rosto enxuto e ledo 
mostras ao mundo contente, 
para esconder-lhe o segredo 
da dor que eite oure, enio sente ! 



82 



Oh ! tens razão ! no mais fundo 
do peito resguarda as dores ! 
não sabe o que são amores, 
não sabe ter pena, o mundo 1 
D'um coração que padece, 
as profundas tempestades 
não sonda, que não conhece 
prantos, martyrios, saudades ! 



Que penas que me disseste !... 
Festa aziaga, infausto dia, 
quando ás rosas da alegria 
veiu enlaçar-se o cypreste !... 
Ai 1 que tristeza nas salas !... 
ai 1 quantos prantos vertidos !... 
o crepe ensombrando as galas !... 
em vez de cantos, gemidos !... 



Frustrado o doce agasalho 

da mãe !... vós, em dor immersas !... 

por sobre as flores dispersas, 

lagrimas em vez d'or valho !... 

em vez da orchestra, os plangentes 

cantos, núncios de martyrios !... 

e, por lustres esplendentes, 

da morte os pallidos cirios ! i 



83 



€omprehendo essa dôr, senhora f 

sei como a formosa Amélia, 

cândida como a camélia 

que se abre aos risos d'aurora, 

no seu dia anniversario 

se ergueu risonha d'esp'rança, 

e foi topar co'o sudário 

em que era envolta Constança I 



Constança I a doce ! a formosa I 
que na aurora da existência 
sentiu roubarem-lhe a essência 
da vida ! tal como a rosa 
que ostenta os seus esplendores, 
luz, matiz, perfumes, gala, 
e após um'hora d'amores 
vem um tufão arrancal-a I 



Triste, triste anniversario!... 
Hm infausto dia foi este 1... 
c'rôas, ramos... de cypreste! 
sedas brancas... d'um sudário T 
brilhantes... fios de prantos t 
musica... os ais dos martyrios ! 
poesia... a dos psalmos santos f 
luzes... o clarão dos cirios !... 



1 



Que dia cTannos, senhora ! 
que festa triste I e que afflicta 
é inda a imagem que habita 
dentro <Tess'alma que chora !.., 
Ó minha lyra plangente» 
cala os sons I porque persistes* 
se para dôr tâo vehemente 
não achas notas bem tristes ?l... 



* ^ 



Pomba: acolhe no teu seio 
meu pobre canto. 

Disseste; 
quando o teu livro me deste: 
— «Vou dar-te o assumpto.» — 

Aeceitei-o. 
— «Não falles d'amor, d'esp'rança, 
mas da dor que me consome 1» — 

Possa o nome de Constança 
fazer-te lembrar meu nome. 

Lisboa, 26 de maio de 1864, 



NUM ÁLBUM 



Somos dois viajantes: vós, senhora, 
andais talvez em busca de prazeres; 

eu... sem destino! átoaf 
Percorremos um dia a mesma estrada; 
o acaso nos juntou, e pernoitámos 

no grande hotel — Lisboa. 



86 



Pois que partis primeiro, auras benignas 
vos acompanhem sempre, e vos segredem 

meus votos cTamizade. 
Se ellas voltarem junto a mim de novo, 
que me tragam de vós uma lembrança; 

se fosse uma saudade !... 



Lisboa, 16 d'abril de 1863. 



DIZEM 



(num álbum) 



És bella ?... dizem que és bella 
os que tem tido a ventura 
de viver junto de ti; 
dizem que és meiga e singela, 
que tens alma e tens candura, 
e mananciaes de ternura 

no teu seio. 
Eu nunca te vi, mas creio 
nos mil louvores que ouvi ! 



88 



Porque este dizem, senhora, 
esta vaga voz que passa 
por juuto do trovador, 
como entre os risos da aurora 
mago som que se esvoaça 
nas franças do roble em flor; 
esta musica celeste 
do bem-dizer, que vai longe, 
tem não sei quê de suave, 
que lembra o perfume agreste 
que entra na gruta do monge I 
tem notas dos trillos da ave 
que á hora em que morre o dia 
vai poisar na cruz d'um ermo, 
e exhalar do seio enfermo 
caudaes de melancolia ! 

É pois santa a voz que passa 
atravez do espaço immenso, 
como um canto solitário; 
lembra o hymno que esvoaça 
por entre as nuvens do incenso 
sob as naves dum santuário i 

Creio, sim, porque a minh'aima, 
dos cantos filha e da luz, 
nunca poude ser esquiva 
ás seducções da poesia ! 
tudo que é bom a seduz f 



89 

tudo que é nobre a captiva t 
tudo que é bello a inebria f 

Mas, senhora, a minha lyra, 
quando só oiço, e não vejo, 
geme triste, nâo se inspira, 
como eu quizera, por ti. 
Manda, pois, o meu destino 
que só o signal d'um desejo 
eu deixe marcado aqui: 
— Quero offerecer-te um hymno, 
mas quando eu disser: — Já vil — 



Parada de Gonta, setembro de 1864. 



NO ÁLBUM DO MEU AMIGO ROCHA PARIS 



Paris: tens um lindo nome, 
mas tens um nome fatal 1 
não te mettas com Helenas; 
não queiras ir dar mais penas 
ao teu pobre Portugal ! 

Podes ter irmão valente, 
e acoitar-te ao seu valor; 
mas se o pae da rapariga 
fôr Achilles, e na briga 
nos matar o nosso Heitor?!... 



92 

Todos nós ficámos gregos! 
Muitos Enéas então 
treparão pelas encostas, 
levando Anchises ás costas 
e Ascaninhos pela mão. 

Lê muito a historia d 1 Andrómacha; 
não a esqueças nunca mais; 
no meio dos teus amores 
lembra de Tróia os horrores, 
o incêndio, o sangue, e os ais. 

Tu podes amar um anjo... 
quem não ama o que ama Deus?) 
Chamasse-se o anjo Helena, 
que eu cá, fazia-o sem pena, 
dizia-lhe logo— adeus! — 



ARBUSTO MANINHO 



(AO MEU PARTICULAR AMIGO LUIZ ANTÓNIO NOGUEIRA, 

d'angra DO HEROÍSMO, 

QUANDO ME PARTICIPOU O NASCIMENTO 

DE SUA PRIMEIRA FILHA ) 



Tu já tens visto arbustos na montanha 
que se vestem de flor na primavera, 
mas de pallida flor triste e inodora, 
e a quem jamais dos vendavaes a sanha 
consentiu que ao pastor, á abelha, á fera, 
desse um fruto no outomno? Attenta agora 
para mim um momento, e has de, sem custo, 
achar o meu retrato 
nesse infecundo arbusto. 



94 



Pensa depois em til vê como é grato, 
após o trabalhar, achar-se um berço, 
ninho alvíssimo e quente, em que descança 

avesinha que ri!... 
És pae!... Ser pae é viver sempre immerso 
em ondas de poesia e d'esperança; 
é ser mais seu e nâo pensar em si; 

é trasbordar d^amor; 
é derramar prazer do seio a flux; 
é correr, correr sempre cauteloso, 
e não sair do quarto, em derredor 

do seu mórbido ninho, 
como anda a borboleta em torno á luz, 

a abelha em torno á flor; 
é presentir um ai, e alvoroçar-se; 
aprender só de si que se resume 
o almo sustento para o caro implume 
em manjares... de leite e de carinho !... 
Ser pae é ser bemdito do Senhor I 



Triste do ser que ha de viver sósinho 
sem ver um fruto de bemdito amor ! 
triste do arbusto que nasceu maninho, 
ornando-o apenas... descorada flor! 
flor que te envio, porque o vento adverso 

m'a quiz poupar a mim ! 

depõe-na sobre o berço, 
e ao teu anjo dormente dize assim: 



95 



— «Dorme, filha, meu thesoiro, 
ao som das vagas do mar t 
róseos anjos d'azas d' oiro 
venham teu somno embalar I 



No mez dos cantos e flores 
nascente, ó rosa gentil I 
Deus te dê éden d'amores, 
e aromas d'um longo abril! 



Primeira estrella fagueira 
d'enamorado pallor, 
primeira flor da roseira, 
primeiro beijo d'amor, 



c'rôem-te os iris da esp'rança, 
formem teu leito os rosaes, 
mensageira de bonança, 
pomba da arca de teus pães ! 



Bafeje a Virgem teus olhos; 
o Senhor te firme o andar; 
o vento varra os abrolhos 
do chão que tens de pisar t 



96 



Dorme, filha* meu thesoiro r 
que eu velo e guardote aqoií 
róseos anjos d' azas d'otro 
segredam em torno a ti ! 



Bem longe, em saudade immerso, 
tenho um amigo» um irmão, 
que te daria por berço, 
minha filha r o coração.» — 



A SENTIDA MORTE 



DO MEU ESPECIAL AMIGO 



ANTÓNIO D' ALBUQUERQUE DO AMARAL CARDOSO 



Eh bien I prends, assouvis, implacable jostice, 
ITagonie «i de mort ee besoin immortelt 

LAMiBTm. 



O sacrário das preces e dos prantos 

abriu-se e nos espera ! 
Dae ao luto monção, calae-vos todas, 

aves da primavera I 
Deixae da penitencia aos psalmos tristes 

as notas da tristeza i 
Onde chora a amizade, é bem que choro 

amiga a natureza. 



98 



No verão da existência a vida é bella, 
risonha, e festival ! 

porque pois do ataúde assim nos pedes 
prantos no funeral?! 



E nós trazemos prantos bem sentidos 
d'alma na viuvez 

por ti, de quem ficou triste orfandade 
órfã segunda vez ! 



Por ti, a cuja porta nunca embalde 
se encostaram afflictos ! 

Por ti, que tantas vezes enxugaste 

o pranto de proscriptos I 



Mais ricos do que tu eram teus pobres, 
exemplo de virtude I 

Nobre e amigo modelo, em paz descança 
além do ataúde ! 



Começou-te na infância o teu martyrio; 

mas, sereno e leal, 
tomaste o amor da pátria por divisa ! 

por senha — Portugal t 



99 



Para longe, bandeiras bellicosas I 

acurve-se o dever 
ante esse vulto digno d'Albuquerques. 

até no padecer!... 



Amigo: pouco vale o meu tributo 
de preces e de pranto; 

como pae, como esposo, o que recebes 
vale mais, é mais santo. 



Pezou-te Deus da vida na balança... 

o fiel estremeceu!... 
Poz na concha d'além tuas virtudes... 

e devia-te o ceo ! 



6 d'abril de 1859. 



4l)385í) 



8 



TRINTA E DOIS ANNOS 



(improviso) 



Trinta e dois annos! E' tarde t 
voltar atraz quem me dera, 
a ver nos campos da vida 
as flores da primavera I 



Vou no pendor 4a ladeira, 
e este declivio é fatal ! 
Como vem dar-me tristezas 
o dia do meu natal !... 



102 



Tudo o que vejo é tão triste I... 
Tudo o que deixo é tão bello !... 
Gomo hoje tenho saudades 
do meu berço tão singelo ! 



Como estio da existência 
me abraza de fogo interno ! 
como se levantam negras 
as nuvens do meu inverno t 



Não é que ao ver o futuro 
me estremeça o coração; 
a sorte pôde vencer-me... 
intimidar-me, isso não I 



Mas sempre, sempre o meu berço 
a campa lembrar-me vem; 
porque para a eternidade 
a campa é berço também. 



E faz tal pena a quem lida 
não ver chegar um conforto !... 
Vamos t lidar nesta faina, 
até que Deus mostre um porto ! 



103 



Para bem longe as tristezas t 
valem mais ledos enganos ! 
bem haja a pura amizade 
que hoje me festeja os annos í 



Um brinde por vós, formosas ! 
por vós, amigos leaes ! 
por todos os que são nossos; 
esposos, irmãos, e pães ! 



Um brinde pelos futuros 
de tanta esp'rança em botão ! 
Vai nelle inteira amizade, 
e completa a gratidão t 



Casa da Povoa do Arcediago, 1 de Julho de 186& 



MIRAGEM 



(Á EXM * SNR. a D. MARIA DA GLORIA DA M. P. YELHO) 



Eu viajo no centro <Tum deserto; 

um mar d'arêa ardente os pés me escalda; 

lume vivo do sol a prumo aberto 

me tisna a fronte e me incendeia a espalda. 



E' de chumbo este ceo triste e inclemente; 
o vento. estruge em harmonias bravas 
o paiz dos bulcões d'arêa ardente, 
onde tem sangue a luz e o sol tem lavas. 



106 

Paiz immenso, e triste, e sem conforto, 
sem virações do mar, sem frescas fontes t 
tudo uniforme, estéril, mudo, morto, 
dos confins aos confins dos borisontes t 



Que mysterio fatal, que negro arcano, 
esconde ao mundo este areal tremente ? 
berço talvez do temeroso oceano.l... 
tumba talvez d'um povo impenitente !... 



Se tivessem chorado, os que morreram,, 
aqui bouvera fonte abençoada; 
mas, quaes seus corações áridos eram» 
árida campa lhes requeima a ossada... 



E' pois de meus irmãos cinza esta arêa, 
onde não voltou mais a primavera ?!... 
E eu... que serei? espectro que vagueia 
entre pó que foi nobre, e é pó, qual era f 



E em vão procuro na soidão calada 
um ponto firme a que segure os braços; 
sempre estas mãos a tactear o nada t 
sempre esta aréa a falsear-me os passos l 



107 



E vejo nos confins dos horisontes, 
em distancia que a vista nunca mede, 
cidades e rosaes, pomos e fontes, 
e morro de fadiga, e fome, e sede ! 



E diz-me a febre:— Além, entre essas flores, 
ba glorias, ha delicias, ha mulheres t 
poeta, accende o estro f eia ! aos amores f 
a dita é perto, e tua é já se a queresf 



Sus I sus t caminha 1 um dia mais ! avante ! 
que amor e gloria te reaccenda a esp'rança I 
Poeta, apressa a tua marcha ovante ! 
sob o myrto e os lauréis feliz descança!» — 



Enxugo o meu suor; no éden visinho 
seguro a vista, recomeço a viagem; 
e, gasto em luta o dia... ou não caminho, 
ou de mim foge a tentadora imagem i... 



Perdi nesta luta os annos 
da infância, que vi morrer 
no ermo dos desenganos, 
no areal do meu viver. 



108 

Cancei; sentei-me na arêa; 
meus olhos não mais ergui; 
convicto, firme, na idéa 
de que bei de morrer aqui. 



O sol mirrou-me os encantos 
de tanta nobre ambição; 
calcinou-me o riso e os prantos 
a lava do coração. 



Que tentadora e que bella, 
miragem que eu persegui f... 
Foge, se chamam por ella, 
e cbama, quando sorri !... 



Se espreitar, nesse horisonte 
hei de encontrada l... bem sei !... 
Não quero vel-a defronte; 
pão posso correr; cancei !.,. 



Sobre esta convulsa arêa, 
firme espero as coqtorsoes 
da morte, que me rodeia 
no esbravejar dos tufões. 



109 

'té que o vento, despenhado 
das azas do vendaval, 
cá me deixe amortalhado 
nas dobras d'este areal. 



Tal a sorte de quem sonha f 
Um sonho só me perdeu !... 
Tudo é miragem risonha !... 
Verdade, estarás no ceo?... 



Parada de Gonta, 1858. 



1 



I 



UM MOCHO 



(PJASSATEMPO D'UM SERÃO d'INYERNO) 



OFF. A UMA EXCELLENTE E ILLUSTRB MÃE 



Inda ba muita gente que treme d'agoiros 
de sapos, corujas, aranhas, lacraus! 
Eu tenho arripios d'ouvir os besoiros, 
e fujo dos mochos! Os mochos são maus! 



Bem sei que se riem de ver-me t5o fraco, 
que estamos no tempo dos sábios profundos, 
mas eu terei culpa cTodiar um macaco, 
e os olhos d'um mocho redondos e fundos?!.. 



112 



Se eu fosse contar-vos milhares de historias, 
que sei, de bisarmas, bruxedos, e fados, 
seriam volumes de bellas memorias... 
mas Deus me defenda de tantos peccados f 



Um caso... esse conto, que foi verdadeiro; 
e, visto que estamos tão juntos e sós, 
ouvi-me as maldades d'um mocho agoireiro... 
mas isto, segredo f que fique entre nós ! 



Deu-se o caso n'uma aldeia 
d'esse nosso Portugal, 
porque na bella Ullyssea 
quem podia crer em tal ? 



Senhora nobre e formosa 
foi n'uma granja viver; 
era mãe tio carinhosa 
como as mães que o sabem ser. 



Às faces alvas e bellas 
faziam lyrios corar; 
e invejavam-lhe as estreitas 
os raios de puro olhar. 



113 

Nas horas dos seus tormentos 
erguia os olhos aos ceos; 
todos os seus pensamentos 
voavam puros a Deus ! 



Se orava por seu esposo, 
por seus filhos, pae, e irmãos, 
Deus sorria carinhoso, 
€ eram dons a plenas mãos. 



Entra um dia a febre ardente 
naquelle asylo do amor, 
e uma filhinha innocente 
caiu no leito da dor ! 



Era o quadro do martyrio 
aquelle grupo gentil ! 
E' triste murchar-se um lyrio 
nas alvoradas d'abril. 



A filha, encostando a frente 
ao seio da triste mãe, 
derramando pranto ardente, 
e a mãe a chorar também t 



114 

— «Mãe: eu tenho frio e sede f 
Minha mãe, por teu amor ! 
pôe as mãos ! ajoelha e pede 
por tua filha ao Senhor !» — 



— «Não chores, filha ! são tantos 
os rogos que envio a Deus !... 
Já me conhece os meus prantos, 
e basta que elle oiça os meus í...» 



— «Mãe, faze-me outros carinhos ! 
leva-me longe d'aqui !... 
mostra-me o rio e os barquinhos 
e as flores que inda hontem vi !... 



Se abririam mais os talos 
que nos arbustos deixei?! 
Quero ver os meus cavallos 
que tanta vez abracei,»— 



— «Irás, filha, e nos meus braços ! 
lá te espera o sol e o ar, 
e a harmonia dos espaços, 
aves, flores, terra, e mar.» — 



115 

Saíram. O mar e os montes 
sorriam á triste mãe; 
o seio dos horisontes 
tem seus afectos também. 



A filha entre-abre um sorriso; 
á boca volta o rubi, 
Um raio do paraiso 
descera e poisara ali ! 



Expande-se o firmamento !... 
Os olhos têm fogo e luzf... 
Eis nisto um mocho agoirento 
bateu as azas!... — «Jesus t... 



um mocho na minha herdade I 
e a poisar tão perto !... ali !... 
Mensageiro da maldade, 
mocho disforme, fugi I 



Meu Deus, tí&o temais q*ie esteja 
a tremer do encantador ! 
mas se olha com Unta inveja 
o meuthesoiro, Senhor t... 



116 

Vede-o ! vede-o tão pasmado !.., 
ai, filha f... esconde-te aqui !... 
Senhor, despede o malvado f ... 
Mocho, deixae-nos f fugi ! 



Não venhas trazer desgraça; 
estes lares não são teus !... 
No manto da tua graça 
esconde-a d'elle, meu Deus f 



Salva-a, Senhor dos senhores, 
já que outro amparo não tem f 
D^im mocho contam-se horrores.., 
eu sou christã... mas sou mãe. 



Um mocho na minha herdade f 
um mocho que eu nunca vi l 
Senhor mocho, por piedade, 
eu tenho medo f fugi f » — 



Em vista da senhoria 
o mocho ergueu-se e partiu. 
A innocente, no outro dia, 
cheia de vida surgiu. 



i! 7 

Fique a historia registada; 
mas em segredo... entre nós f 
Um mocho não vale nada; 
mas eu tenho medo !... e vós ? 



Lisboa, 1864. 



NO ÁLBUM 



DO MEU AMIGO A. DE GOUVEIA OSÓRIO 



Álbum, és junto ao mar a inaccessivel plaga 
onde todo o poeta encalha e emfím naufraga. 
Na capa deve ler-se: — «Amigos, aqui jaz 
a fama (Tescriptor de muito bom rapaz !...»- 



Antonio, a praia má nâo tem sequer um porto t 
aqui te digo adeus, e dou-me já por morto. 



ADEUS 



(para ser recitado, no brazil, pela nossa primeira actriz, 

kmilia das neves) 



Brazil, já vou partir ! Eis o tremendo instante 
de vos deixar emfim, a vós, que sois tão meus ! 
à pátria irmã da minha, irmã formosa e amante f 
e ás palmas t e ao triunfo t Adeus, Brazil t Adeus t 



Vim, peregrina da arte, em férvida romagem 
pedir ao mundo novo — amor, ardência, e luz. 
De muito me sorria em celestial miragem 
leu rosto virginal, terra de Santa Cruz. 



122 



Ha muito que anhelava o enthusiasmo ardente 
que me de cá sorria e me bradava além: 
— «Oh f vem, sacerdotisa f o templo está patente; 
o altar, accezo; e a orchestra, á tua espera! — vem !»■ 



Vim demandar o templo... achei um capitólio f 
palmas, o pavimento; o sobreceo, lauréis; 
a arte, que me sorri, diz-me que ascenda ao sólio; 
vestem-me a stringe e o manto os crentes mais fieis t 



Subo ao altar submissa... eis o estrondear da festa 
a dar-me fogo ao seio, a erguer-m'o de paixão l 
Onde era a pobre actriz que vinha tão modesta?!..* 
Ó enthusiasmo ! ó gloria ! ó alma! ó coração ! 



Nao mais !... Corre, meu pranto ! Após o sol da gloria 

as trevas da saudade, a inconsolável dor !... 

De tudo resta só... fiel, grata memoria, 

que sempre hei de guardar entre a saudade e o amor í 



i 



123 



Que luto é o luto d'alma ! alma que se desterra 
partido o seio em dois, e em dois affecto igual ! 
eu volto ao meu paiz... mas deixo a minha terra ! 
Consente-m'o, Brazil f consente-o, Portugal I 



Adeus ! já vou partir f Eis o tremendo instante 
de vos deixar emfim, a vós, que sois tão meus f 
á pátria irmã da minha, irmã formosa e amante f 
e ás palmas ! e ao triunfo ! Adeus, Brazil f Adeus f 



NO ÁLBUM 



DÁ BXC." SNR.» D. MARIA ANNA PAES BARRETO, 

DE PERNAMBUCO 



Ave estrangeira, soltas 
o vôo altivo ao largo ! 
é-me tão triste e amargo 
pensar que já não voltas !... 



Vi-te um momento, e após, 
fantástica visão, 
levas comtigo a luz ! 
e nesta cerração 
fica a pezada cruz 
d'uma saudade algoz ! 



126 

Nao crês ? teu alto espirito, 
que nesse olhar transluz, 
abona-te os protestos 
que solta a minha voz. 



Vae! vae-te ! e lembra sempre 
esfhora em que te vi ! 
que não te esqueça o culto 
que ficas tendo aqui. 



Ave estrangeira, soltas 
o voo altivo ao largo f 
oh ! como é triste e amargo 
pensar que já nao voltas ! 



Lisboa, 9 d'abril de 1865. 



A MINHA ESTRELLA 



A. • • • 



A minha estrella é tão bella, 
é tão brilhante no ceo, 
que eu vivo e morro por ella I 
mas este amor é só w&u; 



só I que este segredo amigo 
ninguém no mundo ouvirá: 
commigo sempre; commigo 
Ba sepultura entrará t 



128 

Ai (Telia, ai de mim, se um dia 
transluzisse o meu amor ! 
Estrella, quem julgaria 
virginal o teu pallor ? ! 



Coraras d'outras estrellas 
ao motejo desleal, 
tu, a formosa entre as bellas f 
tu, a angélica vestal ! 



que tudo se crê manchado 
ao fatal contacto meu I 
se digo um nome adorado, 
na pobre lanço um labeo ! 



Sou tal como ave agoirenta 
em seu nocturno pregão 
fazendo coro á tormenta t 
Vê tu que negro condão ! 



Já vês, estrella, que o nivel 
que nos deu raias fataes 
poz entre nós o impossível !.., 
Por isso te amo inda mais i... 



129 

Vive entre os astros, ó bella, 
não queiras nunca descer t 
antes quero amar-te estreita, 
do que abraçar-te mulher f 



Não desças do firmamento, 
do teu ceo, do teu altar, 
ao baixo nivelamento 
em que me vês rastejar. 



Se do ceo teu rosto é filho, 
se é teu pallor divinal, 
não queiras manchar-lhe o brilha 
nas lamas do tremedal. 



O Deus que tudo reparte 
compensa-nos tudo aqui: 
sei que não posso lograr-te... 
mas posso morrer por ti. 



E por ti morro, alto o digo í 
por ti, meu santo fanal! 
meu astro bondoso ! amigo t 
minha cândida vestal ! 



«30 



Sou qual nauta aventureiro, 
que, a sua estreUa a mirar, 
busca um porto hospitaleiro... 
e acha sempre o ceo e o mar. 



Nunca I nunca !... pois é crivei?! 
que fazeis, marcos fataes ? 
fazeis... tentar o impossível I 
querel-a, amal-a inda mais I... 



Parada de Gonta, outubro de 1856 



MINHA BARCA ! 



(1 EX. 01 " SNB.* D. J. G. GAYICHO) 



Minha barca, ao largo ! ao largo i 
longe a praia, longe o mundo t 
ao sentir, que é tâo profundo, 
a soidâo somente apraz. 
Fiquem lá na terra embora 
os mimosos da ventura; 
barca, dá-me a aragem pura, 
as soidões, o ermo, a paz. 



10 



132 

Dá-me a paz, que entre os humanos 
chamo em vão, e em vão desejo; 
onde busco e nunca vejo 
o que pede o coração; 
onde espiam nos meus olhos 
um segredo, um sentimento, 
e um ouvido ha sempre attento..- 
Barca, dá-me a solidão I 



Proa ao mar, e o rumo á sorte, 
minha barca airosa e bella ! 
venha o sul ! venha a procella í 
que te importa o temporal ? 
Sobe as vagas 1 desce 1 voa I 
rasga a vela I quebra o leme t 
Coração triste não teme 
escarceos, nem vendaval I 



Adeus, praia ! adeus, familia f 
adeus, prados 1 adeus, relvas t 
adeus, cânticos das selvas I 
adeus, rosas dos salões ! 
minha barca, solta e livre 
como a rosa destroncada, 
vai contente acalentada 
entre os braços dos tufões» 



133 






Se eu achar por sepultura, 

ao fugir do mundo ás maguas, 

vosso abysmo, ó fundas aguas, 

quem pranteia o martyr ? quem ?f 

E se um vento bonançoso 

me encontrar sósinho e absorto, 

e levar a barca a um porto, 

quem me acolhe ali? — ninguém I... 



Minha barca, ao largo ! ao largo f 
longe a praia, longe o mundo ! 
ao sentir, que é tâo profundo, 
a soidâo somente apraz. 
Fiquem lá na terra embora 
os mimosos da ventura; 
barca, dá-me a aragem pura, 
a soidão... a morte em paz !... 



VERSOS 



QUE OS FILHOS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO 

OFFERECERAM 

COM UMA COROA DE LOIROS ' 

A ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO 

NA OCCASIÃO SM QUE ELLE ASSISTIA Á INAUGURAÇÃO 

D'UM MONUMENTO 

QUE LHE ERA CONSAGRADO 

NA QUINTA DE S. MIGUEL DE SEIDE 



Por entre cantos e flores 
chegaste, rei da poesia, 
como um clarão <f alegria 
jorrando em mansão d'amores. 



Onde ha rei, ha sceptro e sólio f 
Rei, vimos trazer-te a c'rôa. 
Tens maior corte em Lisboa, 
não tens melhor capitólio. 



136 

Somos de troncos robustos 
os loiros, os tenros gomos. 
Das flores surgirão pomos?... 
se Deus regar os arbustos I 



Porque és grande, hão de os vindoiros 
dar-te a sagração dos hymnos; 
porque és bom para os meninos, 
toma esta c'rôa de loiros. 



Nossa c'rôa e nossas flores 
guarda em saudosa memoria; — 
o monumento é da gloria; 
a cYôa é só dos amores. 



Vais partir ! leva-a comtigo, 

e jura por teus carinhos 

que, em nós já sendo homemzinhos, 

serás nosso mestre e amigo. 



Quinta de S. Miguel de Seide, julho de 1866. 



JÁ?! 



(A ...) 



Já? f tão cedo o sol fulgente 
foge do nosso hemispherio, 
e ficámos sob o império 
d'uma noite escura e só?! 
.Porque veiu a luz do oriente 
mostrar-nos tantos fulgores, 
para venturas e amores 
tudo vermos feito em pó ? 1 



138 

Não vale mais nascer cego 
do que ter vista e perdel-a ? i 
Lembra a flor, e lembra a estrella* 
que amámos. Que negra dor !... 
E que ancioso dessocego, 
nos effluvios da saudade, 
que exbala a flor da amizade, 
que chora a estrella do amor I... 



— Adeus — é triste e agoireiro f 
e os corações que desune, 
se nova estrella os reúne 
ás vezes... nem todos são. 
No momento derradeiro 
d'um adeus de despedida, 
murcha sempre a flor da vida, 
chora sempre o coração í 

Adeus ! Que tristeza agora i 
qqe longa melancolia 1 
vermo-nos inda outro dia 
quem sabe se a Deus apraz ? f 
Adeus, fulgores d'aurora ! 
adeus, iris de bonança i 
ó rosas, nuncias d'esp'rançat... 
adeus, ó pombas da paz t... 



i Cantiga popular» 



139 

O prazer dura momentos; 
e lega sempre a amizade, 
num tributo de saudade, 
tristezas de solidão t 
De solitários tormentos 
cheia a balança da vida, 
chega a quebrar d'opprimida 
seu fiel, — o coração I 



Parada de Gonta, 15 d'outubro de 1858. 



LOUCURAS 



(A ...) 



Tudo assim vai ! tudo vacilla e verga f 
tudo se esfolba, se esmorece e pende I: 
o roble adusto que o tufão posterga, 
a flor d'um dia que uma brisa offende I 



Tudo assim vai I Na solidão, perdida, 
morre a affeição, á mingua d'uma palma; 
a fé mais viva se esmorece n'alma; 
no seio, a flor; e no sepulcro, a vida. 



142 



O ramo que hontem, conchegado ao peito, 
sorria aos olhos, perfumando as galas, 
hoje esfolhado pelo chão, desfeito, 
vôa disperso tapetando as salas. 



A virgem que hontem scintilava pura, 
estrella cTalva d'um risonho dia, 
hoje... dá risos que não têm magia, 
hoje... tem frases que não dão ventura t 



Tudo assim vai ! tudo vacilla e verga ! 
tudo se esfolha, se esmorece, e pende !: 
o roble adusto que o tufão posterga, 
a flor d'um dia que uma brisa offende i 



Tudo assim vai ! Na solidão, perdida, 
morre a affeição, á mingua d'uma palma; 
a fé mais viva se esmorece rfalma; 
no seio, a flor; e no sepulcro, a vida 1 



Que triste que estou nesfhora 
de desconforto mortal ! 
como asylo sepulcral, 
onde o sorriso não mora I 



143 

•••••■■■•■>.• 

Parecem meus tristes ais 
prantos de noite sem brilhos, 
lamentos d'ave sem filhos 
nas franças dos cyprestaes. 



Alma presa esmorecida 
entre as algemas da dor, 
como entre cardos a flor 
em rocha (Termo nascida t 



Teu brilho escondido em pó, 
bastarda das primaveras ! 
estranha ás auras e ás feras, 
triste, murcha, inglória, e só ! 



Mirram-te nesses algares 
as labaredas do sol; 
vais apagar-te, pharol 
dos meus inhospitos mares... 



vais, que ninguém te conduz 
mais óleo durante o dia, 
nem tens nocturno vigia 
que alimente a tua luz ! 



144 

Mirra a flor o sol ardente, 
se o orvalho a não vem salvar; 
e apaga as luzes do altar 
do vento um sopro vehemente. 



Como a planta sem frescor, 
e como a luz do ar balida, 
morres afogada em vida, 
morres á mingua d'amor. 



Mulher, nâo tens culpa; eu sei 
que foi sina do meu berço . 
perder-me, em anciãs immerso 
de mil sonhadas quimeras: 
sonhei-te qual tu não eras; 
busquei-te... não te encontrei... 
foi minha a culpa, mulher ! 
As rosas que tu me deras 
vi-as murchar e morrer... 
eu bem sei o que são flores t 
As falias que me disseras 
porque as havia de eu crer 
mais que de banaes amores ? 



Tu Dão tens culpa das dores 

que ando a padecer na vida , 

l 



145 



dês que te vi; não tens, não ! 
as minhas penas, querida, 
devo-as... ao meu coração. 



Ver-te e amar-te em doce enleio 

era uma religião, 

de que me deste o baptismo: 

o Deus, era o teu amor; 

teu seio d'almo candor, 

era o vaso d'eleição, 

em que o fogo do heroísmo 

ardia em vasto clarão. 



Cheguei vacillante e só 
á meza da communhão... 
mas a hóstia, o sacro pão, 
amargava a scepticismo !... 
o Deus dissipou-se em pó f ... 
o altar tornou-se balcão !... 
caí do templo no abysmo t 

Eu quiz o teu amor como um conforto. 
No pélago das mil tribulações 
serias galvanismo d'este morto, 
que boiava á mercê sobre baldões; 
e nas horas de dor e d'afflicção 
nunca o teu nome invocaria em vão. 



146 



Eu qniz o teu amor para meu guia 
nos caminhos da vida que eu não sei... 
cegou-me o teu olhar; fugiu-me o dia; 
e após, da minha mão, a mão que amei ! 
e nas penas da minha escuridão 
era o teu nome que invocava então. 



Eu quiz o teu amor para a meus cantos 
dar fé, calor, e vida, que não têm; 
para ensinar-me á lyra o riso e os prantos, 
os fogos da paixão e os ais também; 
e, quando a Deus pedia a inspiração, 
era o teu nome que invocava então. 



Eu quiz o teu amor como um sacrário, 
onde eu fugir pudesse á minha dor. 
Doía-me o rigor do meu fadário ? 
ia buscar allivio em teu amor: 
pois, quando me expulsava a ingratidão, 
era ao teu seio que eu voava então ! 



147 

Fallo, e nao me ouve ninguém I 
eis-me assentado sósinho 
junto á beira d' um caminho 
que nâo sei onde conduz ! 
pobre mendigo d'amores, 
sem pão, sem agua, sem luz !... 



Não tens culpa ! eu bem conheço 
que fado nasceu commigo ! 
De ti sei... que és meiga e pura !.. 
Deus te dê tanta ventura 
quanta me fugiu comtigo !... 



Parada de Gonta, julho de 1854. 



ti 



\} 



OS SONHOS DO ESCRAVO BRANCO 



(fragmento) 



AO MEU PARTICULAR AMTGO 
JÚLIO CÉSAR DE FARIA COUTINHO E CASTRO 
AUTOR DO DRAMA 
«ANTÓNIO O ENGAJADO» 



Nas soidões do novo mundo, 
além das virgens florestas, 
onde o paiz não tem sombras, 
nem o trabalho tem sestas, 



junto aos sulcos fecundantes 
das plantações d'uma roça, 
dormia um branco algemado 
no centro d'immunda choça. 



150 



Fugiu por matar saudades: 
cortou-lhe os membros o açoite; 
em prantos gastara o dia, 
em visões passava a noite. 



Por entre os fundos gemidos 
escutae-Ihe as amarguras... 
(inda o pincel da ironia 
a desenhar-lhe venturas \): 



— «A pátria, os irmãos, a esposa, 
todos chamando por mim !... 
Se vissem como é formosa 
esta terra... este jardim !... 



v« 



C * 



Bem vejo o triste colmado 
a reclamar-me d 'além... 
e o lenço branco ensopado 
co'os prantos de minha mãe !... 



151 

Como hei de ás praias amadas 
voltar da pátria gentil, 
se tenho as mãos carregadas 
co 9 as riquezas do Brasil t... 



Oh t se elles d'além, das aguas 
vissem meus áureos grilhões, 
não mais curtiriam maguas 
dentro de seus corações !... 

Mataram-me estes algozes... 

mas que o não saibam meus pães !...»• 



Perdeu-se o resto das vozes 
entre gemidos e ais. 

Vigore-se o trabalho ao sol da liberdade ! 
pereça a escravatura, opprobrio das nações ! 
morra-se de fadiga... é lei da humanidade ! 
mas nunca acceite um livre açoites, nem grilhões ! 

Brasil, terra d'irmaos ! aqui no mundo velho 
fugiu de nossas leis a condição servil 1 
Tu que és do novo mundo o sol, o guia, o espelho.., 
és muito grande já... pois sê maior, Brasil !... 

Lisboa, 3 d'abril de 1863. 



\ 



ESTERILIDADE 



(NO ÁLBUM DA EXM.* SNR. a D. MARIA LEONOR DE CASTILHO) 



Chego, após tanta demora 
em te pagar o meu preito, 
cançado, triste, e desfeito, 
á tua porta, senhora. 



E' tão crua a sorte minha 
que, após um anno d'espera, 
trago o teu cofre qual era... 
só rico do que já tinha. 



154 

Nâo sabes cfUanto consome 
os campos o inverno enxuto?.., 
não colhi flores, nem fruto... 
foi mesmo um anno de fome t 



Na primavera inda os gomos 
dos meus arbustos sem seiva 
pediram á sêcca leiva 
sustento para os seus pomos; 



mas veiu o abrazado estio 
trazer-lhe' affrontosa morte, 
completando d'esta sorte 
as gentilezas do frio t 



Tens tantos dons, és tao nobre* 
que certo bas de ter piedade 
de tanta esterilidade, 
do teu rendeiro tão pobre. 

Esp'rando em annos futuros 
mais formosa primavera, 
venho hoje pedir-te espera 
do capitai e dos juros. 



Lisboa 14 de fevereiro de 1853. 



AS NOVAS CONQUISTAS 



(OFF. ÁS CLASSES OPERARIAS DE PORTUGAL) 



As nobrezas. <routr'ora sâo da historia, 
que em lettras (Toiro illustra acções de guerra. 
Correram tempos; transformou-se a gloria: 
mais vai que a luz do incêndio, a que illumina; 
mais faz que espada ou lança, escopro e serra; 
mais que mil arsenaes, uma officina. 



156 



Hoje é o trabalho o campo da batalha; 
a industria faz plantão, fachina, e guarda; 
soldado e general é quem trabalha; 
é mais condecorado o que mais faz; 
é-lhe bandeira, a sciencia; a blusa, farda; 
e santo e senha — diligencia e paz. 



Não condemno o que foi; canto o que vejo 
dar lustre ao meu paiz, e á minha edade: 
respeito a gloria antiga, nâo n-a invejo, 
que me não vale os bens que ora contemplo 
surdir (fentre o labor da humanidade. 
Tem fastos nobres o presente! 

Exemplo: 



Tinha acabado a festa; e eu vim sósinho 
escutando os conceitos dos convivas 
que saiam, como eu, do templo civico 
tão rico de lições. 

Fora a festa brilhante: enlevo d'olhos, 
as mulheres e as rosas; 

enlevo d'alma, as oblações saudosas 
a dois grandes varões, 



157 



filhos e astros da pátria em que nasceram, 
que viveram por ella, e que lhe deram 
almas, braços, palavra, e corações; 
exemplo a registrar, a paga á vista 
d'uma divida santa ao varão forte 
que emprega a vida em arrancar á morte 
o naufrago que anceia entre os baldoes 

das ondas procellosas. 
A esmola ao pobre; o refrigério ás dores; 
os prémios ás fadigas do operário; 
e, como para esmalte ao santuário, 
as graças da mulher, musica, e flores. 



Á porta baixa de modesto albergue 
o que escutei é bem que oiçais também; 
são sinceras palavras d'um artista 
fallando a sua mãe: 



— «Eis-me I cheguei, velhinha I acceita o meu diploma, 
premio do meu trabalho, honra de minha mãe ! 
O meu formoso quadro I... hei de envial-o a Roma t 
e o diploma na arca, oh ! guarda-o, guarda-o bem I 

e quando algum visinho, um d'esses preguiçosos 
que choram noite e dia o alheio galardão, 
vier fallar de mim com olhos invejosos, 
6 desdenhar do artista ennobrecido, então 



158 



tira-o do fundo da arca, e aponta-lhe o meu nome f 
que leia, que decore as frases de louvor ! 
e dize-lhe, ateando a inveja que o consome: 
—Vede ! meu filho é isto í e vós que sois, senhor?...» 



— «Deixa abraçar-te, meu filho l 
meu pequeno artista t vae 
seguindo sempre esse trilho 
que te ensinara teu pae. 



Teu pae, sim, que te abençoa 
d'além da campa onde jaz; 
do reino, onde a eterna c'rôa 
florece em perpetua paz. 



Conta-me, filho, o que viste 
nessa festa que eu não vi; 
e que tudo quanto é triste 
fuja bem longe d'aqui.» — 



E a mãe beijava-lhe a testa, 
e o filho abraçava a mãe I 
Era o epilogo da festa; 
olhos profanos não o vêm. 



m 



— «Mãe: imagina um templo armado em grande gala, 
entre modesto e rico, entre oíficina e sala; 
altar, sem supedaneo, ou cruz, ou sobreceos, 
onde o trabalho só tenha o logar de Deus; 
flores, luzes, orchestra, enchendo o santuário; 
e pontífice— o puro, o fervido operário; 
entre o opulento e o pobre, os homens do saber; 
entre o ministro e o par, as graças da mulher. 

Abi tens o templo. 

Agora o que lá foi d'encanto 
já sei que vais ouvil-o, ó mãe, banhada em pranto, 
que os extasis traduz d' um grande coração 1 

Qual em sagrado altar, no topo do salão 

ba três retratos, três, em três molduras d'oiro, 

e cada um d'elles, mãe, vale o melhor thesoiro. 

Os nomes ouve agora, e vê que a minha voz 

treme de os proferir, mesmo de sós a sós I 

Se isto não é o assombro ante os clarões da gloria, 

desça da base a estatua ! acabe o preito á historia ! 

Não ! não 1 que o sinto aqui no coração fiel t 

Um d'elles (curvo a fronte) é Passos Manoel ! 
dos liberaes sem mancha exemplo e incitamento; 
o que do povo ouviu lamento por lamento, 
e a cada pranto novo abria o coração. 
Teve dos seus o amor; não quiz mais galardão. 



160 



Modesto e bom viveu; morreu honrado e pobre. 
Que nome tão singelo ! e que alma grande e nobre ! 
O coração, a vida, a paz, tudo elle deu 
á pátria, á liberdade, a tudo que foi seu ! 

O outro... era... o amigo... o pae dos opprimidos... 
Quero dizer-lhe o nome, e abafam-m'o os gemidos t 
Esse tribuno invicto, essa inspirada voz, 
que era o terror, o encanto, o amor de todos nós ! 
Sabes ? quem não conhece esse orador sublime ? 
o abrigo da virtude? o raio contra o crime? I 
Era impossível, mãe, quando elle ia a passar, 
ver-nos sem nos sorrir, vel-o sem o saudar. 
Anima va-se a pátria em elle erguendo o braço f 
media d'um só vôo as amplidões do espaço I... 
Parece-me ainda vel-o, o augusto campeão, 
cheio de fé e espYança o altivo coração 
em que do amor da pátria o sacro incêndio lavra f 
Gigante da tribuna t artista da palavra f 
Corôa-lhe um fulgor sublime, divinal, 
a fronte mais gentil que teve Portugal ! 
Falia ?... prendeu-nos já I somos do seu encanto; 
choramos entre o rir; rimos por entre o pranto; 
fulmina, e implora, manda... ás vezes sem fallar; 
que tudo falia n'elle; o rosto, o gesto o olhar t 
Nas lidas do trabalho andou a sua enxada; 
e nas da liberdade, a voz, a penna, a espada. 
Se um déspota assomar... Tu choras, minha mãe? 
o morto deixa a campa ! Oh ! vem ! juro que vem f 



161 

Chora... por elle não: foi-lhe madrinha a gloria; 
e pantheon a campa, e apotheose a historia. 
Chora, porque lhe é grato o preito funeral; 
chora por ti, por mim... por este Portugal l 

Ao pé de taes varões, á sombra d'esta gloria, 

quem podes tu suppor que estava ali ? que historia 

te parece condigna á historia d'estes dois, 

que desse um companheiro ás sombras dos heroes ? 

Um navegante audaz, temido em toda a parte, 

que fosse além do oceano erguer nosso estandarte?... 

um sábio conselheiro?... um general, talvez, 

que desse fama e lustre ao nome portuguez?... 

Mas se elle é tão modesto, e o nome é tão singelo ! 

Se fosse Gama, ou Castro, ou Pinto, ou Souza, ouMello!... 

se, á mingua d'appel!ido illustre, fosse... par, 

conde, barão, ou duque... emfim um titular I... 

se, ao menos, do thesoiro houvesse um bom salário !... 

mas é plebeu e pobre o triste do operário I... 

Eu disse— do operário? achei-lhe a profissão ! 

nisto se cifra idéa, e braço, e coração. 

Seu nome vou dizer I roubal-o a ingrato olvido. 

Joaquim Lopes I... vês tu? nem mais um appellido! 

Defronte do retrato estava o original. 

Votar a gloria em vida é raro em Portugal ; 

pois fez-se ali I Por Deus I consola que aos artistas 

coubesse o posto d'honra á frente de conquistas 

que hão de livrar do opprobrio a historia das nações, 

livrando da miséria os Miltons e os Camões. 



162 



O velho estava ali, ao pé da sua gloria ! 

eníre os seus bons irmãos, ante o sorrir da historia. 



Mas d'este honrado velho a grande acção qual é? 

porque teve honras taes ? Queres saber porquê ? 

Pergunta aos vagalhões do oceano revoltoso 

se elle tremeu jamais ante o seu ronco iroso; 

se os filhos com seu choro, a esposa com seus ais, 

com seu escuro a noite, o raio, os vendavaes, 

fizeram trepidar o velho ante o presagio, 

as lutas, o clamor, as anciãs d'um naufrágio. 

Mal que do mar á praia assoma um ai de dor, 

na salvadora barca o homem salvador 

lá corre sobranceiro, ao horror do cataclismo 

salvando a vaga e vaga abysmo sobre abysmo I 

o corpo sem vigor, que a onda ia tragar, 

encontra um braço e um lenho, e sobre a praia um lar. 

Ganhou (que os traz ao peito) hábitos e medalhas, 

nunca matando irmãos, mas a rasgar mortalhas t 

Olha a distancia, ó mãe, que vai de heroe a heroe: 

um mata, outro dá vida; um salva, outro destroe. 

Que é do que em prol d'irmãos a sua vida emprega ? 

ninguém na turba o vê I pois se a justiça é cega l 

Ao filho, pois, do povo, o povo ennobreceu; 

mais que reaes mercês o povo ao povo deu. 

Quando orares aos pés do celestial monarcha, 
roga-lhe ampare sempre o remador e a barca t 



163 

Era a noite para as glorias 
do homem que lida e sua, 
co'a fronte curvada e nua, 
noite e dia em seu mister; 
para artistas e operários, 
de cujas mil ofQcinas 
surdem criações divinas 
que o mundo pasma de ver. 



Ali, pois, houve seu premio 
todo o esmerado trabalho, 
que a serra, o tear, o malho, 
buril, escopro, ou pincel, 
mandou á cidade heróica; 
lidei por elle, ganhei-o; 
inda guardas no teu seio 
o documento fiel. 



Escuta o final: — A' America, 
senhora d'além dos mares, 
terra dos virgens palmares, 
e dos virgens corações, 
levou seu facho a discórdia 
com seu cortejo d'horrores, 
e sobre frutos e flores 
jorra o sangue em borbotões* 



12 



164 

Lambem as línguas do incêndio 
villas, plantações, e roças, 
e dos casaes e das choças 
foge o colono infeliz. 
Deixa a aldeia pelo exercito t 
a lida pelas batalhas I 
o sulco pelas muralhas !.*. 
E assim se mata um paiz !... 



Perde a canna o humor dulcíssimo; 
seu doce fruto, o coqueiro; 
e o modesto cafeeiro 
perde o seu próvido grão; 
o ananaz, a pinha opípara; 
a bananeira, os seus cachos; 
perde os seus alvos pennachos 
o humanitário algodão I 



O algodão, que da indigência 
era a barata limpeza I 
o aceio de leito e meza 1 
roupa, mortalha, enxoval! 
O algodão, que a tanto artífice 
dava o pio quotidiano, 
eil-o extincto além do oceano t 
eil-o extincto em Portugal t 



165 

Andam por isso operários 
nas vastas praças do Porto, 
sem trabalho e sem conforto, 
a mendigar o seu pão !... 
Mãe, deixa correr as lagrimas, 
porque o pranto a dor acalma ( 
Isto ennegrece a nossa alma ! 
Isto parte o coração t 



Já vês que á festa, que a gloria 
deu para exemplo á cidade, 
veiu meiga a caridade 
erguer as sagradas mãos. 
Ninguém lhe negou seu óbolo t 
Entre artistas como é nobre 
a esmola de pobre a pobre ! 
soccorro d'irmãos a irmãos t 



A' porta da sala esplendida, 
Ai, mãi I como isto consola t 
ia dar... a grande esmola t 
do parco dinheiro meu, 
e duas donzeilas cândidas, 
tão lindas como os amores, 
trocaram-m'o todo a flores, 
que têm aromas do ceo. 



JL66_ 

Toma-as; põe-n-as no oratório 
aos pés da Virgem Maria, 
e has de ver quanta alegria, 
o bento ramo nos dá. 
Nas horas das tuas maguas 
conchega-as ao peito, aquece-as; 
a caridade conhece-as, 
e a Deus por nós pedirá !» — 



E a mãe beijava-lhe a testa, 
e o filho abraçava a mãe ! 
Era o epilogo da festa; 
olhos profanos não o vêm. 



Àhi tendes loiros d'hoje ! as ultimas conquistas 
d'um povo culto e bom não têm outro brazão. 
Pede o trabalho a c'rôa ao templo dos artistas 
para a levar, submisso, ao templo da nação. 



Olhae pelo presente, idolatras da historia ! 
deixae o cemitério I ao berço vos chegae ! 
pelos cuidados de hoje haveis riqueza e gloria; 
é bom filho o trabalho a quem souber ser pae. 

Parada de Gonta, 9 d'outubro de 1863. 



FOGE! 



(num álbum) 



Lisboa é como o abysmo: espanta, prende, e mata; 
fascina, attrai, algema, o eterno borborinho !... 
Feliz, oh I bem feliz, o que o grilhão desata, 
e pôde ainda fugir buscando o pátrio ninho t 



Circumda-a flórea relva, aromas, oiro e. cantos, 
palácios, e jardins; no centro, o antro, o inferno* 
profundo, cavernoso, a vomitar espantos, 
onde o prazer se esvai ante o lamento eterno. 



168 



Ave da brenha alpestre, ao ledo canto esquiva, 
fadada já por Deus para cantar só maguas, 
cruzei o espaço azul buscando uma luz viva 
que vi lá da montanha a dardejar nas aguas. 



Yoei... r voei... a luz crescia no horisonte I... 

— «Adeus, gratas canções I adeus, soidão celeste !...» 

Era já longe o extremo alcantilado monte, 

onde ha mato florido, onde ha perfume agreste. 



Aqui, o plaino infindo; aqui, o mar immenso; 
aqui, o hymno altivo em vez da humilde prece; 
além, ar transparente; aqui, profano incenso, 
<jue torna fusca a luz, que embriaga, que endoidece- 



Cheguei; pairei; desci; poisei n T esta voragem, 
que rouba o amor do seio, a candidez das almas I 
crestou-me a chamma a branca, a mórbida plumagem; 
poisei sobre um pragal onde sonhava palmas i 



169 



Tudo perdi !... 'té mesmo o raio d'alegria 
que em triste coração no intimo sacrário 
arde escondido e só, como da campa fria 
nas fendas nasce e cresce um goivo solitário, 



por fim se me apagou !... Tudo perdi, senhora ! 
Troquei, pela do incêndio, a luz da primavera. 
Volto bem outro ávida, ao meu paiz d'outr'ora, 
mais pobre do que vim, mais triste do que eu era. 



(V pomba, foge ! foge ! Este murmúrio eterno 
aturde e abafa a voz da pátria tão querida; 
mas não leves, como eu, saudades, d'este inferno, 
onde me fica... morta uma porção da vida !... 



FAÇO IDÉA 



(num álbum) 



— «A proprietária do livro 
que te aqui deixo, Thomaz, 
é minha amiga; e verás 
que não tem nada de feia.» — 
— «Façoidéa.» — 



~«E' Beatriz!» — 

— «O nome é lindo I» 
— «E o corpo ? airoso e gentil I... 
e aquelle nobre perfil I... 
e a fronte que o orgulho alteia 1...» — 
— «Faço ideal» — 



172 

— «E vai fugir-nos, poeta !.., 
cançada já de festins, 
troca os salões por jardins, 
a capital pela aldeia !...»— 
— «Façoidéa.» — 



— «Não fazes idéa I enganas-te ! 
não pôde haver fantasia 
que sonhe inteira a magia 
de que Beatriz se rodeia!» — 
— «Façoidéa 1!» — 



— «Ai fazes ?i.. pois nesse caso 
descrê ve-a assim — tal e qual.» — 
— «Mas... sem veF o original ?{...»■ 
— «Amigo, não se arreceia 
quem faz idéa!» — 



O meu amigo, senhora, 
que a verdade não falseia, 
fez assim vosso elogio, 
e eu fiquei... fazendo idéa ! 



Lisboa, 3 de junho de 1862. 



A JUDIA 



RECITADA 
PELA ACTRIZ EMÍLIA ADELAIDE PIMENTEL 
HO THEATRO DE D. MARIA II, EM A NOITE DO SEU BENEFICIO) 



Corria branda a noite; o Tejo era sereno; 
a riba, silenciosa; a viração, subtil; 
a laa, em pleno azul erguia o rosto ameno; 
no ceo, inteira paz; na terra, pleno abril. 



Tardo rumor longínquo; airoso barco ao largo 
bordava áureo listrao do Tejo ao manto azul; 
cedia a natureza ao celestial lethargo; 
traziam meigos sons as virações do sul. 



174 



O' noites de Lisboa ! ó noites de poesia I 
auras cheias cTaroma f esplendido luar ! 
vastos jardins em flor ! suavíssima harmonia I 
transparente, profundo, infindo, o ceo e o mar !.., 



Se a triste da judia ousasse ter desejo 
de pátria sobre a terra, aqui prendera o seu: 
um bosque sobre a praia, um barco sobre o Tejo> 
e eleito da minh'alma um coração só meu I... 



Corria branda a noite; immersa em funda magua 
fui assentar-me triste e só no meu jardim; 
ouvi um canto ameno ! e um barco ao lume d'agua 
vogava brandamente. A voz dizia assim: 



— «Dormes ? e eu velo, seductora imagem, 
grata miragem que no ermo vi; 
dorme — Impossível — que encontrei na vida t 
dorme, querida, que eu descanto aqui ! 



175 



Dorme I eu descanto a acalentar-te os sonhos, 
virgens, risonhos, que te vem dos ceos ! 
dorme ! e nâo vejas o martyrio, as maguas, 
que eu digo ás aguas, e nâo conto a Deus ! 



Anjo sem pátria, branca fada errante, 
perto ou distante que de mim tu vás, 
ha de seguir-te uma saudade infinda, 
hebréa linda, que dormindo estás ! 



Onde nasceste ? onde brincaste, ó bella? 
rosa singela que não tens jardim? 
Em Jafa ? em Malta? em Nazareth ? no Egypto ?... 
mundo infinito, e tu sem berço ?! oh ! sim, 



folha que o vento da fortuna impelle I 
victima imbelle que um tufão roubou ! 
flor que num vaso se alimenta, crece, 
ri, desparece, e nunca mais voltou ! 



Filha d'um povo perseguido e nobre, 
que ao mundo encobre o seu martyrio, e crê t 
sempre Ashevero a percorrer a esfera ! 
desgraça austera I inabalável fé ! 



176 



porque bade o lume de teus olhos bellos 
mostrar-me anhelos definito ardor? 
porque esta chamma a consumir-me o seio?..- 
Deus de permeio nos maldiz o amor !... 



Peito ! meu peito, porque anceias tanto? 
pranto! meu pranto, basta já, não mais f 
é sina, é sina I remador, voltemos; 
não n-a acordemos... paraqué, meus ais?... 



Dorme, que eu velo, seductora imagem, 
grata miragem que no ermo vi; 
dorme— Impossível— que encontrei na vidai 
dorme, querida, que eu não volto aqui !»— 



Sumiu-se abarca, e eu chorava 
debruçada sobre o Tejo; 
a aragem trouxe-me um beijo 
que nos meus lábios tomei... 
ergui-me cheia d'affecto; 
vi scintiliar inda a esteira 
da barquinha feiticeira, 
e disse ás auras:— «Correi ! 



177 

trazei-m'o ! quero contar-lhe 
o fundo tormento enorme 
da judia que não dorme 
a penar d 1 ignoto amor ! 
voae f trazei-me o seu nome, 
o seu retrato, o seu canto, 
uma baga do seu pranto... 
que venha ! o meu trovador !... 



Ai, não I que ha na minha historia 
que lhe suavise a tristeza? 
Nasci na triste Veneza, 
onde perdi minha mãe; 
acalentaram-me lagrimas 
que derramava a saudade, 
na desgraçada cidade 
que não tem pátria também. (*) 

Cresci; meu pai uma noite 
disse-me: — «É já tempo agora; 
ergue -te ao romper d'aurora, 
vamos partir amanhã; 
vamos ver as terras santas, 
sepulcros de teus monarchas; 
a pátria dos patriarchas, 
desde o Egypto a Chanaan.» — 

(*) A data da poesia explica «ate verso. 



178 

Fui; corri o mappa immenso 
das montanhas da Judeia; 
ai, pátria da raça hebréa ! 
ai, desditosa Sião ! 
que extensos montes sem relva 1 
que paragens sem conforto ! 
onde se estende o Mar-Morto, 
e onde serpeia o Jordão !... 



Aqui, de Hemor os vestígios; 
de Ziphe, além o deserto; 
longe, o Sinai encoberto; 
d'Horeb o morro, inda além; 
d'este lado, o Mar- Vermelho; 
d'aquelle... nada I uns destroços: 
ruinas, campas sem ossos ! 
e, ao fundo, Jerusalém 1 



Meu pae chorava, e eu chorava, 
vendo morta e sem prestigio, 
terra de tanto prodígio, 
maldita agora de Deus. 
Tudo silencioso ( estéril ! 
tudo vastos cemitérios 
onde ruinas d'imperios 
ficaram por mausoleos ! 



179 



—«Meu paè— disse eu— tenho sede !» 
— «Vê, filha, a aridez do monte ! 
só Deus dava ao ermo a fonte 
em que bebia Ismael.» — 
— «Pae, cancei; mostra-me a pátria, 
quero dormir sem receio...» — 
— «Filha, encosta-te ao meu seio, 
que não tem pátria Israel.» — 



Em todo o mundo estrangeira f 
toda a vida peregrina ! 
Vede se ha mais triste sina: 
ser rica, e não ter um lar I 
Sempre a lenda do Ashevero ! 
sempre o decreto divino ! 
sempre a expulsar-me o destino, 
como Abrahão á pobre Agar ! 



13 



180 

Que pôde valer á hebréa 
sentir n'alma chamma infinda? 
como a iinda Ester ser linda, 
e amada como Rachel ? 
Se o coração da judia 
se entre-abre do amor aos lumes» 
não lhe dá tempo aos perfumes" 
o seu destino cruel. 



Ai, trovador nazareno 
não voltes ( tenho receio... 
Dizes que é Deus de permeio ? 
não ! blasphemaste ! Deus, não t 
Poz o mundo esse impossível 
entre o desejo e a ventura; 
o amor chama-lhe — loucura; 
e o preconceito — razão. 



Deus é Deus, e um só existe ! 
cego é o mundo, e varia a crença l 
mas esta cúpula immensa 
é tecto de todos nós t 
este ambiente que respiro, 
da lua e do sol os brilhos, 
hão de ser de nossos filhos t 
foram de nossos avós ! 



181 

Mas se a crença nos separa, 
e o mundo exige o supplicio, 
dê-se o amor em sacrifício, 
deixando-se o pranto á dor; 
eu, cerro o peito á ventura; 
tu, esmaga o teu desejo; 
não mais virei junto ao Tejo... 
não voltes mais, trovador í 



Lisboa, abril de 1864. 



TÂNTALO 



(num álbum 



Sabeis quem era Tântalo? O coitado, 
por mais que fez, não poude entrar no ceo: 
foi ás penas eternas condemnado !, 
e tão grave castigo mereceu... 

não sei por que peccado... 

por glotão ! que sei eu ? 



184 



Tanto comeu, tanto bebeu, que o eterno 
Jove, cançado ao serio com tal méco, 
o condemnou, com todo o amor paterno, 
a perpetua abstinência ! E magro, e peco, 

lá vive no inferno 

a enguiir em secco. 



Vê pomos junto aos lábios, mas não come; 
vive mettido n'agua, e o seu frescor 
não lhe mitiga a sede que o consome: 
foge-lhe o fruto e a fonte; e neste horror 
morre de sede e fome !... 

Ha Tantalos d'amor t 



Lisboa, 13 de junho de 1864. 



UM CANTO DA PUERÍCIA 



•(RECITADO POR UM DOS ALUMNOS DO COLLEGIO DE S. PEDRO D^LCANTARA 
NA FESTA DO SEU PRIMEIRO ANNIVEBSARIO) 






Salve, augusto anniversario ! 
Finda um anno... (Erguei as mãos !) 
dês que entrámos no sanctuario 
da nova fé, meus irmãos 1 



Gratidão á caridade ! 
ao mestre as bênçãos dos ceos ! 
paz e bens á humanidade I 
honra aos nossos I gloria a Deus ! 



186 

£' findo um armo ! a innocencia 
deve-lhe preito d'amor: 
foi na manhã da existência 
o nosso primeiro alvor; 



foi quem abriu nossos olhos, 
e o leite d'alma nos deu; 
fez-se a luz ! trevas e abrolhos 
a caridade os varreu ! 



A primavera tem hymnos, 
relvas, flores, fogo, e luz ! 
Os pobres e os pequeninos 
amava-os muito Jesus ! 



De Deus foi seguido o exemplo; 
folgar, meninos, folgar, 
que, após as festas do templo, 
ri-se a escola, as mães, e o lar t 



Somos de plantas mimosas 
esperançoso embrião; 
amanhã virão as rosas; 
depois, os frutos virão. 



187 



Co'os velhos a caridade 
só no ceo seus prémios tem; 
mas, se abriga a nossa idade, 
acha-os na terra também. 



Que pois d'esp'ranças bemditas ! 
faça Deus homens por fim, 
e que as hervas parasitas 
fujam do nosso jardim I 



Se o manto da caridade 
tão santo abrigo nos dá; 
se o sol da eterna verdade, 
seus raios nos manda já, — 



abramos os olhos d'alma 
a tâo vividos clarões: 
a pátria tem muita palma 
á espera de bons varões. 



A escola é próvido ninho; 
a escola é templo d'amor: 
dão-lhe luz, vida, e carinho, 
a pátria, as mães, o Senhor. 



188 

E do nosso asylo a historia 
que nobreza tem ! sabei 
que foi sagrado á memoria 
d'um grande e chorado rei. 



Chorado como até agora 
nenhum foi neste paiz ! 
ai t porque nunca uma aurora 
se ergueu com tanto matiz !... 



Seu nome... nem a saudade 
m'o deixa aqui repetir I 
Vós o sabeis, que a orfandade 
soube-o amar, sabe-o carpir I 



Sabem-n-o: o artista, o poeta, 
os sábios, os seus iguaes, 
a officina, a choça infecta, 
e os leitos dos hospitaes ; 



a piedade, que na esmola 
que dá, mostra a sua dor; 
sabe-o mais que tudo a escola, 
que lhe deveu tanto amor t... 



189 

Por isso, ó cândidas almas, 
sempre o seu nome louvae t 
ficam tão bem entre as palmas 
as saudades por um pael... 



A vida, após a memoria ! 
após a saudade, o amor ! 
sobre uma gloria, outra gloria t 
sobre a cruz, um resplendor I 



Novo monarcha ergue o braço; 
chovem dons da regia mão; 
e um real augusto abraço 
nos conchega ao coração t 



Pois que o passado saudoso 
do ceo nos olha e sorri; 
pois què o presente esp'rançoso 
nos protege e ampara aqui, 



190 

desdobrem-se os tenros gomos 
das plantas que hâo de florir t 
Fé, e espYança, irmãos, que somos 
operários do porvir ! 



Cubramos d'osculos puros 
santa mão que nos conduz t 
Agora... peito aos futuros, 
e caminhar para a luz ! 



Lisboa 29 de junho de 1863. 



BEM-VINDA 



(por occasiâo do consorcio de suas magestades fidelíssimas 

O SENHOR D. LUIZ E A SENHORA D. MARIA DE SABOYA) 



Bem-vinda ao nosso Tejo, ó triunfal bandeira t 
íris da bella Itália t astro de muita espYança ! 
segues do nosso rei a augusta companheira t 
Dissipe-se a tormenta aos risos da bonança t 



Emflm respire a grey ! levante um hyrano era coro 
de bênçãos, cTalegria, após o immenso luto t 
aos pés do throno em gala, inverta em riso o choro 
inteiro o coração ! É justo esse tributo. 



492 



Tu não sabes, rainha?... o peito era opprimido 
(Tanciar por esta pátria, a quem queremos tanto f 
Ao ver chegar tão só, pallido, compungido, 
o rei junto do thrpno, a disfarçar seu pranto, 



pedimos muito, muito, ao martyr do Calvário 
que lhe arrancasse da alma essa amargura infinda ! 
Foi Deus que te mandou, pomba do santuário !... 
Vens consolal-o emfim I Bem-vinda I oh ! sê bem-vinda f 



Se no teu berço augusto a paz è combatida, 
se os hórridos vulcões têm flammas na cratera, 
a causa do opprimido a Deus é commettida ! 
Confia no juiz, acalma a dor,— espera ! 



A vasta nau da Itália abriu todas as velas 
sem medo ao pego fundo e ao turbilhão que freme. 
Tem, a mostrar-lhe o porto, ou iris, ou estreitas t 
a liberdade, á proa 1 a lealdade, ao leme ! 



E se inda irado mar em torno ao teu palácio 
brama aos duros tufões da Áustria e á'Aspromontt t 
em breve um sopro do alto ha de limpar do Lacto 
a escuma da tormenta, as nuvens do horisonte ! 



193 



E tu no emtanto a nós, ó pomba espavorida, 
acolhe-te, da paz formosa mensageira ! 
n^arca de nosso peito has de encontrar guarida; 
nos braços d'este povo— os ramos da oliveira ! 



Terás na lusa praia as ribas italianas; 

sole que diz— fartura, e ceo que diz — bonança; 

searas da Sicília; auras napolitanas; 

e flores de Saboya em prados de Bragança ! 



Terás do povo o amor, que te foi dado inteiro 
mal que a paterna mão de nós te confiara; 
o braço, o coração de D. Luiz Primeiro, 
e as bênçãos que te guarda o martyr de Novara. 



Senhora, pois que vens a semear venturas 
no campo que inda enxuga os prantos da saudade, 
rainha, ajuda o rei a ter-nos bem seguras 
a paz, a independência, a honra, a liberdade ! 



194 



E nós, cheios cfamor e d' alegria infinda, 

iremos supplicar ao Martyr do Calvário J 

haja de transformar á que nos foi bem-vida 

a pátria num altar, o sólio num sacrário t 



A HORTÊNSIA 



O pobre cão... De que vos rides, bellas ? 

affecto por affecto... Olhae que é cega 

e surda a taboada t e não vos toma 
em conta essas estrellas 
de vividos carbúnculos 

que em vossas frontes de marfim scintillam, 
nem o suave aroma 
e o mel que se distillam 

do entre-aberto raminho d'essa bocca 
de jasmins e rainunculos I . 



ti 



496 



Affecto por affecto... ha mais e ha menos; 
e sobretudo o enthusiasmo, a ardência, 
que scintilla, trasborda, e se derrama 
em gotas d'affectuosa effervescencia, 
é mais de vós, humanas divindades. 
Mas os brandos carinhos ? e os serenos 
affectos das profundas amizades ? 
a branda, casta chamma, 
que, em vez d'expandir-se, entra 
no peito, e aquece, e dura; 
affecto que, saudoso e paciente, 
se conchega, se aninha, e se concentra, 
e faz morrer um ente 
sobre uma sepultura... 
pôde sentil-o assim o pobre câo I 

e, exposto ao sol e á chuva, 
velar o ultimo somno 
e a ingrata solidão 
da campa de seu dono, 
chorando... mais viuvo... que a viuva!... 

Ganta-se a pomba — a casta mensageira, 
a rolinha viuva, e o rouxinol 
cantor das solidões* 
a andorinha das ruas— forasteira 
crioula a baloiçar-se entre os festões 
e as messes das ferazes estações 
preza aos raios do sol, 
e o mocho— o mais cruel 



197 



de quantos feiticeiros- 

vem aturdir o mundo 

com pios agoireiros, 
e hei de calar do amigo mais fiel 

o puro, o immenso amor, 
terno, constante, bom, cego, profundo ?., 

Hei de cantar-te, Azor t 



Chora-o, sim, formosa Hortênsia, 
que os teus olhos por chorosos 
não ficam menos formosos. 
Custa muito a eterna ausência 
de quem nos amou na Tida, 
que é sem remédio essa dor ! 
Chora, sim, chora, querida; 
perdeste um servo e um amor! 



Mostrava tanta saudade 
quando acaso te não via f... 
Que delirios d'amizade t 
quando afagavas, tremia í 
quando eras triste, gemia! 
cantavas... endoidecia! 



£ quando, em cruéis momentos-, 
de ti o lançavas fora, 



J 



198 



com que penas e lamentos 
o pobre Azor se carpia I... 
Chora, bella Hortênsia, chora ! 



Também eu tenho gravada 
no meu peito a mesma dor, 
lembrando a immensa alegria 
com que elle, quando eu subia, 
vinha saudar-me na escada 
como um prenuncio d ? amor I 
Que pena me faz agora 
entrar onde já não mora, 
Hortênsia, o festivo Azor t 



Sou como o pobre faminto 
que as tremulas mãos estende 
á bem-vinda, escassa esmola: 
todo o carinho me prende ! 
todo o affecto me consola 1 



199 

Gomo tu eras querido, 
meu pobre amigo t que amor 
que tu, morrendo, abandonas f 
quanto affecto estremecido, 
e quanta saudade, Azor, 
nas almas das tuas donas, 
no peito do teu senhor I 



Um dia, a formosa Hortênsia, 
da morte prevendo o insulto, 
tirou-te o retrato, e a tela 
com surprendente eloquência 
te mostra vivo e presente; 
e no olhar intelligente 
inda nos pedes um culto 
de saudade para a ausência f 



Foste bem feliz, amigo I 
que te deu propicia sorte, 
na vida — tão doce abrigo, 
tantas saudades na morte. 



Não morreste I não te esquivas 
ao amor que nos inflamma ! 
quiz o pincel da tua ama 
que, inda além da morte, vivas f... 



Se teve o cão do Louvre trovadores, 
guarde o nome d' Azar grata a amizade; 
ta deste-lhe na tda eternas cores, 
eu dou-lhe no meu canto uma saudade. 



Lisboa, 1867. 



ANNIVERSÀRIO 



(Á EXM.» BNTV.» D. MARIA AMÁLIA TAZ DE CARVALHO) 



I 



Eis seu dia de festa f eil-a ditosa, 
flor a desabrochar entre delicias t 
Paes» amigos, cercae-a de caricias t 
Aves, é primavera I a rosa ! a rosa ! 



Surgiu, desabrochou entre montados ! 
F vossa irmã, sabeis ? comvosco mora; 
se cantais, canta, ao pôr do sol e á aurora; 
se voais, voeja, entre os jardins e os prados. 



202 



Yós a ensinastes a cantar tão cedo 
num tom suave o festival gorgeio 
que ao ceo nos leva; e (Tesse ignoto enleio 
é vosso, é d'ella, o divinal segredo ! 



Celestes virações, descei 1 beijae-a ! 
que eu sei como vos ama e vos decora 
os carmes que, ao primeiro alvor da aurora, 
passando murmurais á flor da olaia. 



Rústicas notas de canção singela, 
sylphos que volitais entre as balseiras, 
fragrâncias das festivas laranjeiras, 
é hoje o dia anniversario d'ella ! 



Saudae-a todos vós ! vede-a ditosa, 
flor a desabrochar entre delicias ! 
Paes, amigos, cercae-a de caricias 1 
E' vinda a primavera ! a rosa I a rosa ! 



203 



II 



Vê, senhora: entre os convivas 
(Teste jubiloso dia 
só prazer, vida, alegria, 
respira, falia, transluz 1... 
Como é que eu, triste e enlutado, 
canto em festiva linguagem ? 
a tão alegre romagem 
que devoção me conduz ? 



Canto a recordar as horas 
que passei a vosso lado ! 
lembro um sonho namorado 
que teve um triste acordar ! 
traz-me aqui uma lembrança, 
que falia em cantos e flores !... 
Ai, maga mansão cTamores, 
faz'-me esquecer o meu lar ! 



£04 



Longe, longe esta tristeza 1 
prazer, por meãs lábios falia I 
ha brindes, e festa, e gala ! 
ha juventude, ha viver I 
ha poesia, ha formosura, 
que a chamma do seio ateia I 
já meu estro se incendeia ! 
ao prazer 1 eia ! ao prazer I 



Brindo á musa (Testes bosques ! 
brindo ao seu estro divino ! 
brindo ao prospero destino 
que Deus conceda ao seu lar t 
a seus pães ! á irmã formosa, 
coração de fina essência ! 
á familia, providencia 
dos povos d'este logar ! 



Quinta de Pinteus, 2 de fevereiro de 1866. 



ENTRE FLORES 



(NO ÁLBUM DA EXM.' SNR.* D. MARIA DA ASSUMPÇÃO DE PODENTES) 



Imagina, senhora, 
uma casinha branca entre arvoredos; 
um lago junto d'ella; 
junto ao lago um jardim. 



A' porta da morada encantadora, 
uma hastea d'hera a entretecer um arco, 
e a enrolar-se nos vimes d'um jasmim. 
No jasmineiro, um ninho; 



206 

uns ovinhos lá dentro, e os ternos medos 
com que os guarda amorosa filomela. 



Dentro do lago, um barco; 

e nelle uma donzella 
d'olhos humedecidos e formosos*, 
grandes, azues, profundos como o espaço; 

cabello ondeado e solto; 
collo de cysne; o corpo esbelto e airoso; 
lyra d'oiro poisando-lhe no braço; 
um veo de gaze em ondas mil revolto 

por .sobre a azul roupagem: 
como aérea visão que se evapora 
quando o poeta enamorado acorda 
ao sentido vibrar d' intima corda, 
ou névoa matinal velando a aurora. 
E emquanto de seus lábios melindrosos 
fogem suaves, indistinctas maguas, 

e timida suspira, 
sua elegante e seductora imagem 
a reflectir-se no cristal das aguas, 
e a segredar-lhe uns magos sons a lyra !... 



Serranias gigantes 
erguendo-se nevadas e arrogantes 
na extrema do horisonte, 
e do outro lado o mar t 



207 



Com murmurinho manso, incerto vago, 
a poética lympha d'uma fonte 

desce furtiva, e a medo 
se escoa e cai dos musgos d' um rochedo 

a tintilar no lago ! 



Modifique-se o tom do quadro ameno: 



A luz do sol desmaia; 
repinta-se d'azul o mar e o ceo; 
os roseiraes redobram de perfumes; 
d'anhelitos frementes a floresta; 
crepitam na amplidão tímidos lumes t 
Na molle copa da tufada olaia 
acorda um rouxinol em cada arranca, 
e um raio de luar que além se ergueu 
bate de chapa na casinha branca ! 



Ó bella, escuta agora 

os sons que vem das aguas ! 

Que toada encantadora I... 

Diz alegria, ou maguas ?... 
A voz, ora se alegra, ora se enluta I 
Minguem sabe se canta, ou se suspira, 
a branca fada que dedilha a lyra 1... 

Escuta!... escuta!... 



208 



— «É posto o sol ! horas do casto enleio, 
velae meu seio em que trasborda amor f 
Minh'alma, accende a veladora chamma ! 
Expande-te, ama, solitária flor ! 



Dedilho a lyra, e pranto a flux me brota f 
e em cada nota se me enreda um ai ! 
astros, sorri-me I áureo luar fulgura ! 
lago, murmura ! rouxinoes, cantae t 



É bella a vida entre canções e flores f 
Sombra e fulgores têm o valle e os ceos; 
hymnos, o bosque; a madre-silva, incenso; 
concerto immenso do infinito a Deus 1 



Mas d'onde vem esta tristeza suave 

ao canto da ave, ao scismador luar ? 

ao bosque, ao valle, ao ceo, á choça, ao monte, 

ao lago, á fonte, ao gemebundo mar ? 



D'onde este arfar? d'onde este vagaaneeio 
na aura, no seio, e no tremer da flor ? 
é pena, e ri ! quando é prazer suspira ! 
dize-me, ólyra, é tudo isto...» — 



209 

— «Amor!» 

lhe respondeu voz ignota. 
Ella estremeceu de pejo, 
e abafou a ultima nota 
nos sons d'um tremulo harpejo. 



Se te agrada esta paizagem, 
se achas o quadro risonho, 
dá-te por finda a romagem. 
Tens a verdade bem perto, 
mas vale mais o teu sonho. 



Já viste, ó virgem, de certo, 
co'a luz do teu alto espirito, 
que tracei de fantasia,* 
e co'as tintas descoradas 
da minha obscura palheta, 
o bosquejo da poesia; 
faltou... pintar-te o poeta í 



Na casa que tanto alveja 
vive o pobre; mas lá dentro, 



210 

onde o seu génio se expande, 
não vás, que é mansão de dores I 
Bem sabes ! tudo que é grande 
tem por fora alvura e flores... 
mas... ai! que abysmos no centro t... 



Deixo incompleto o meu quadro. 
O fundo é todo funéreo I 
Só te mostro as galas do adro, 
mas fecho-te o cemitério ! 



Lisboa, 31 de maio de 1866. 



NUM ÁLBUM 



Folha, quando te arrancares) 
some-te no espaço immenso ! 
rasga-te por esses ares ! 
que podem julgar-te incenso 
que arde em profanos altares. 



Vês ? e tu, pura de vícios, 
toda alvura e claridade, 
vens pela mão da amizade 
ao altar dos sacrifícios, 

15 



212 

onde é pontífice o amor; 
e onde tu, hóstia incruenta, 
só és clarão que aviventa 
as graças de muita flor t 



Eu bem sei que a poesia 
perdeu seu manto de luz, 
que altiva arrastava outr'ora; 
traz hoje a fronte sombria; 
é triste, a nobre senhora; 
mas, mda triste, seduz ! 



E eu quero-lhe mais assim, 
que é mais da minha orfandade t 
A minha flor é a saudade. 
A rosa, o cravo, o jasmim, 
são mais enfeites e incenso 
para profanos altares. 



Folha, quando te arrancares, 
perde-te no espaço immenso ! 



Estoril, 24 de junho de 1867. 



ZARA 



CONTO DE MOIRAS ENCANTADAS 



(A eliza) 



I 



Quando menino... e já lá vão bem annos t 
em noites de janeiro, ao pé do lar, 
contavam-me as cachopas e os serranos 
contos que me faziam já scismar ! 



Umas vezes entravam na aventura 
frades... Deus lhes perdoe, que já lá vão !.. 
outras, casquilhos, mas... de miniatura I 
e pães, que tinham forças de Roldão ! 



214 



e homens de pés de cabra, e umas princezas 
mui secias e tafues saindo sós 
pelos bosques, montanhas, e devezas, 
deixando adormecer aias e avós, 



e uns estudantes de mau sestro e manhas, 
e uma fantasma branca, e um bicho, e um rei, 
e umas fadas gentis... tudo patranhas 
que de cór aprendi... que inda hoje sei!... 



Por isso, quando o mundo anda mais tonto, 
e mais revolto vejo o temporal, 
eu folheio a memoria, e acho num conto 
proveitosos preceitos de moral. 



Queres ouvir, senhora? Agora mesmo, 
em vez de te escrever cantos d'amor, 
vou-te deixar aqui um conto... a esmo f 
Seja... A Moira encantada! Este é melhor ! 



Contou-m'o uma velhinha: era tao bella, 
com seus crespos cabellos de marfim !... 
Tal qual t'o vou contar, contava-o ella ! 
E e eu pasmado a escutar !... Dizia assim: 



215 



II 



— «Houve um tempo em que a moirisma 
calcou terreno christão, 
e foi Jesus insultado 
pelos crentes do Alkorão ! 



Jamais um crente islamita 
se descobriu ante o altar f 
rosto fero, alfange em punho, 
era só roubar, matar t... 



Queimavam corpos humanos 
ao lume da santa cruz ! 
faziam carvão dos santos, 
e das reliquias !... Jesus !... 



Tanto sangue derramaram 
aquelles monstros sem fé, 
que Deus tinha preparados 
destinos d'outro Noé ! 



216 

Os astros mostravam sangue 
em toda a amplidão dos ceos, 
como sentença de morte 
com sangue escripta por Deus í 



A lua, lago sereno ! 
o sol, um mar a ferver ! 
prantos de sangue, as estrellas t 
e a terra em sangue a gemer I 



Eram de sangue as cidades ! 
de sangue, o templo, o altar f 
de sangue, as fontes da selva ! 
de sangue, as ondas do mar t 



de sangue, os frutos do campo ! 
de sangue, a flor do jardim f...» 
Eu rezei um Padre-nosso; 
benzeu-se ella, e disse assim: 



217 



III 



— «Junto das caras tisnadas 
d'esses tigres orientaes, 
viam-se as moiras, tão lindas, 
tão distinctas de seus pães !... 



O sol deu-lhes lume aos olhos, 
e aos rostos meigo rubor ! 
Ai I se fossem baptisadas, 
eram anjos do Senhor!... 



Que nobres frontes altivas I 
que breve, que lisa mão ! 
e os seus meneios de cobra f 
e os collos... que perfeição ! 



e dos cabellos pendentes 
que soltos, longos anneis !... 
mas dizem que eram de fogo 
seus corações infiéis !... 



218 



IV 



Chega o dia desejado 
da celeste punição, 
e o incêndio das mesquitas 
purgou o templo christão ! 



Reapparece a cruz, erguida 
sobre o crescente f Lá vão 
d'Agar os filhos fugindo, 
e as moiras... nem todas ! não f 



— Parae ! — lhes disse o destino. 
Tentaram fugir... em vão f 
— Vivei!... — e vivem ! mas hoja 
onde vivem ? onde estão ? I 



Solitárias, encantadas 
dos montes na solidão, 
são como flores caídas 
d'ingrata, pérfida mão I 



219 



Fez-lhes eterno um conjuro 
o bater do coração; 
deu-lhes perpetua lindeza 
nâo sei que mago condão !.. 



Hoje vivem... Ninguém sabe 
se as tristes vivem, se não ! 
têm risos... mas não têm prantos t 
têm sentir... não têm paixão ! 



aspiram... não têm desejos ! 
tudo ali é vago e vão ! 
são como aéreos fantasmas 
passando em louca visão I 



Tu nunca viste o rochedo 
que tem o signo samão, 
e a fonte que lhe resalta 
dentro da gruta em cachão ? 



Uma ali mostra o seu oiro, 
que não tem cruz de christão, 
nas primeiras alvoradas 
da manhã de S. João. 



220 

Eu vi-a ! É Zara o seu nome ! 
os dentes pérolas são; 
e tinha os olhos pisados 
de ler no seu Alkorão. 



Se um dia a vires, meu filho, 
que nunca te chegue a mão... 
ou rouba-te os santos óleos, 
e deixas de ser christâo ! 



E ali te passarão séculos, 
tal como ella, espYando em vão, 
pobre florinha esquecida 
dos montes na solidão f...» — 



Senhora, o conto innocente, 
como a velhinha o contou, 
tenho agora bem presente 
a impressão que me deixou t 



221 

Como eu mirava o rochedo, 
o meu conto a recordar!... 
Mas, ai I que medo, que medo, 
eu tinha de lá passar ! 



Ver a moirinha encantada, 
ver o seu meigo sorrir, 
escutar-lhe a voz maguada, 
era o meu gosto, e fugir I 



Se ante mim se abrisse o abysmo, 
ia-me ali despenhar ! 
que a moira tem magnetismo... 
e podia-me encantar ! 



VI 



Hoje as moiras baptisadas 
têm um condão mais fatal I 
Vivem tão desencaptadas t 
e encantam... por nosso mal ! 



222 

Já não são flores do monte: 
têm cidades por jardim, 
reinam em largo horisonte, 
e têm vassallos sem fim !... 



Pois dae-Ibes em vassallagem 
o rendido coração ! 
tributae-lhes homenagem ! 
escravizae-vos ! eu, não ! 



Nem mesmo sendo, valido 
em tempos d'eterna paz f ... 
É templo sem base erguido 
que um só capricho desfaz ! 



Quero a mulher minha, Eiiza f 
singela... vaidade é pó! 
que tenha amor por divisa, 
e, por yassallos, eu só !... 



1854. 



YAE, MAS VOLTA! 



(no álbum da exm.* snr.* d. m. do g. da s. mendes) 



No coraç5o affectos; 
saudades na memoria; 
nisto se cifra a vida 1 
Artista, vae, querida, 
que avassallaste as almas ! 
Para te dar mais palmas 
aqui te espera a gloriai 



Lisboa, junho de 1866. 



A FOLHA VERDE 



(reminiscências do carnaval) 



Quem sabe se foste a causa 
de me eu perder, folha verde ? 
Verde symbolisa esprança^ 
e co'a espYança que sorri 
quanta gente se não perde ? 
É verde o mar em bonança, 
e esconde abysmos em si, 
muita tromba d'aguaceiro, 
muita syrte, e muito damno. 
Talvez... talvez, folha verde, 
que eu vinha por ti absorto !... 
O certo é que me perdi, 
e, desnorteado barqueiro, 
entregando á sorte a proa» 



226 

fiz-me ao largo a todo o pano, 

mar em fora de Lisboa, 

na ré deixando o meu porto !... 

A folha da japoneira 

teria acaso feitiço ? 

seria de feiticeira 

a mão que m'a deu ?... Por isso.. 

Mas nada ! não foi ! não é ! 

A mão era bem bonita, 

que a tive eu nas minhas mãos; 

e juro por minha fé 

que os dedos eram christãos ! 

Só se a luva... Emfim, não sei, 

e o que sei não se acredita ! 

Corri cem ruas desertas ! 

caminhos que nunca andei I 

nem um clarão nas janellas, 

um passo, uma voz,— ninguém ! 

só muito ao longe as alertas 

das nocturnas sentinellas f 

E eu vagando aqui e além 

sçm dar pelo meu desvio I... 

Quando mais scismo, acontece 
que vou no meu desvario 
a andar... por andar ! á tôa ! 
e um ermo até se me antolha 
a rumorosa Lisboa 1 



227 

Mas, á saída do baile, 
em quê, em que scismei eu?!.. 
Em nada I a não ser... na folha 
que a mascarada me deu !... 



Pois inda vos não disse ? o baile era de mascaras ! 
era a folia infrene, o doido carnaval ! 
tropel em turbilhão de sonhos mil fantásticos, 
o vasto auri-luzente abysmo festival ! 



Paiz febricitante, onde se enflora em júbilos 
a imagem do prazer ! grinaldas e festões f 
ondas d'acre fragrância ! ondas de luz prismática ! 
ephemero anciar d'ephemeras paixões ! 



Um mundo multicor ! um multiforme vórtice ! 
onde remanda á vida, a um'hora de prazer, 
um ente, cada povo; um traje, cada século: 
sombras que vem folgar, sorrir, desparecer !... 



Era a odalisca ardente, e o requeimado egypcio 1 
era a varina altiva, e a grega sua irmã ! 
e a Norma enamorada, e a filha do Adriático t 
e a vivandeira audaz, e a fada alva e louçã ! 



16 



228 



À esplendida romana, e a camponeza ingénua, 

d'olhos de tanto amor e lábios tão de mel ! 

e o Tasso, e a saloínha a requebrar-se languida ! 

e um grande á Henrique oitavo, e um nobre á D. Manoel t 



e a scismadora noite, e a feiticeira bohemia ! 
e a intrépida escosseza, e o rude calabrez ! 
e o cavalleiro negro, e a branca flor de Nápoles f 
e a larga espora d'oiro, e o morrião, e o arnez ! 



e a dama de Luiz treze, e o pensativo arménio t 
e o lesto gondoleiro, e o recamado emir ! 
e a salerosa nina, a tentação de Málaga ! 
e a fascinante bebrea, a pérola d'Ophir i 



e a dança, a dança infrene ! e o delirar da musica ! 
e o revoltoso prisma a remoinhar sem fim I 
festão aberto e esparso a dardejar relâmpagos f 
fragrâncias d'um salão, delírios d'um jardim ! 



Prazer e febre em tudo ! Era um correr eléctrico 
de frémitos d'amor ! d'anceios de prazer ! 
um desejar sem fim ! sopravam filtros lúbricos— 
no aroma, cada flor; no rir, cada mulher ! 



229 



Mas quem eram duas mascaras, 
entre tanta garridice, 
cujos nomes ninguém disse, 
cujos rostos ninguém viu ?! 
— «Lindas fadas são !»— dizia-se; 
que, apezar de tão veladas, 
que eram bellas e eram fadas, 
quem não sentiu ? 

E o salão, curioso e férvido, 
a agrupar-se em torno d'ellas ! 
que a luz viva das estreitas 
mais encanta e mais seduz 
quando vem coada e tímida ! 
e era a seda ténues flocos, 
nuvens raras, para focos 
de tanta luz ! 

Era ouvil-as, e no espirito 
conceber visões suaves ; 
sonhar cantos, flores, aves, 
riso, amores, ceos, e bouris ! 
Flores bellas e fantásticas 
quando a mão tenta colhel-as, 
mal se inclina para ellas... 
fogem subtis ! 



230 

E assim fugiram céleres 
os Dominós*azues, 
tristes deixando, e extáticos, 
as bellas e os tafues, 



como fugaz relâmpago 
que fulge e se escondeu ! 



Ficou-me... a folha trémula, 
que uma, o meu par, me deu ! 



Aqui prende e acaba a historia 
da folha verde e das bellas ! 
Se alguém quizer conhecel-as, 
eu posso dar-lhe signaes: 
têm ambas loiros cabellos, 
frontes vastas; estaturas, 
sem serem grandes, esbeltas; 
olhos garços, vivos, bellos; 
pés e mãos... de miniaturas! 
Eis o que vi; nias sei mais 



231 

outro signal que as indica: 
se alguém puder escutal-as, 
note como em suas falias 
se ameniza e dulcifica 
o som das lettras mais duras !..< 



Não sei se a língua indiscreta 
disse mais do que devera ! 
Ao clarão da primavera 
sorri a lyra ao poeta, 
enflora-se, e reverbera !... 



Venha cá, folha travessa ! 
como tem brincos fataes, 
não quero que me endoideça: 
commigo não anda mais ! 

Se alguém disser que a graça é só da França, 
levae-m'0 aos meus travessos Dominós; 
que este desdém do seu, esta esquivança, 
é cá d'uns francezinhos... cTentre nós ! 

Lisboa, 6 de março de 1867. 



A BORBOLETA 



Á EXM. a SNR. a D. SYMI PHILLIPS 



(no seu álbum) 



Eu conheço-a ! oh, se a conheço ! 
sempre volitando anciosa, 
esbelta, fugaz, airosa, 
esquiva, amante, esquecida, 
eterno enigma na vida !... 
Eu conheço-a ! oh, se a conheço ! 
Estimoa; estimal-a é grato; 
quero entendel-a... endoideço ! 



234 

Paira a mirar-se na fonte; 

bate as azinhas subtis, 

desce ao prado, sobe ao monte, 

requesta, endoidece as flores... 

e engeita-as ! Procura a chamma, 

illude-a, foge !... Não ama ! 

Deixae-a fingir amores ! 

são tudo anceios febris ! 

Eu conheço-a ! oh, se a conheço ! 



Dizem as flores do monte: 

— «Sabeis porque ella nos foge ? 

somos serranas e pobres ! 

ella é fidalga e vaidosa ! 

lá quer amores mais nobres ! 

A lisongeira da fonte 

mostrou-lhe o espelho e prendeu-a 

só com dizer-lhe:— És formosa !» — 



Diz a fonte co'um suspiro: 
— «Vão lá fiar-se das bellas ! 
Eu tão pura em meu retiro, 
e tão recatada e amante; 
eu, que regeito ás estrellas 
o amor que em seus raios leio; 
eu, que lhe disse anhelante: 
—Desce ! bebe do meu seio 



235 

todo o néctar peregrino ! — 
pobre de mim í que fiz eu ?! 
julgou -me lodosa e ensossa !.. 
Só liba néctar divino, 
gotas do orvalho do ceo !» — 



E diz a gota do orvalho: 
— «Desci, desci toda a noite 
para a ver na madrugada; 
foi bera pago o meu trabalho !: 
sorriu-me, e passou I mais nada f 
EUa quer lá gotas d'agua 
trémula, fria, incolor ?! 
quer lume, incêndios ! (e é magua !) 
quer chammas vivas no amor !» — 



— «Porque me foge a inconstante 
—murmura trémula a chamma— 
será que um delirio amante 
a attrai ao regato?., ás flores?... 
carinhos de maior preço?... 
cores de novo matiz !...»— 

Nada ! nada ! Eu sei: não ama ! 

Deixae-a fingir amores ! 

são tudo anceios febris ! 

Eu conheço-a ! oh, se a conheço. 



236 

Enganam-se o orvalho e a fonte» 
a chamma e as flores do monte. 
E' varia como os matizes 
das suas azas doiradas; 
não pode lançar raízes: 
quer liberdade sem meta; 
ir sem saber onde vá; 
timbra de ser borboleta ! 
não ba prendel-a ! não ha ! 



Não ha?... Quem sabe? Os segredos 
das formosas mais esquivas 
tem românticos enredos 
que o mundo nem sempre vê. 
Pelos caminhos da vida 
o amor sabe armar uns laços, 
e ás vezes... prende-se um pé... 
depois.,, prende-se a cintura... 
luta-se... e prendem-se os braços... 
e eis rendida a formosura ! 



A flor, essa, d'innocente, 
ama, deseja... mais nada; 
apenas sente... que sentei 
não sabe fazer-se amada ! 
Mas a chamma, que é ladina, 
á formosa, que a requesta, 



237 

e a afaga co'a ponta da aza, 
rouba a innocencia divina: 
co'o fogo as azas lhe cresta; 
com beijos de fogo a abraza !. 



Nada ! eu volto á minha idéa ! 
esta borboleta é intrépida, 
nâo teme laços, nem cbamma, 
nem ba paixão que a submetta ! 
Se a amarem, sorri sem dó ! 
se finge amores, não ama, 
que o juro aqui ! vende só 
desdéns por subido preço ! 
Ha de morrer borboleta... 
Eu conbeço-a ! ob, se a conbeço !... 



Lisboa, 21 de março de 1866. 



NO ÁLBUM D'ARTHUR NAPOLEÃO 



(na Véspera da sua partida para o brazil) 



Teu nome é teu horóscopo: 
Arthur que diz ? Poesia; 
Napoleão? Conquista. 
Adeus, homem fatídico ! 
Vae, vencedor artista, 
poeta da harmonia ! 



Lisboa, junho de 1866. 



OS CEGOS 



(versos recitados no theatro do príncipe real, 

em presença dos cegos da casa pu, 

na noite do seu beneficio) 



Vede ! ceguinhos !... Nenhum (Telles pôde 
yev, entre a doce luz que esplende aqui, 
tanta bondosa mão que lhes acode, 
tanto rosto de bem que lhes sorri !... 



Sempre a tristeza, com seu duro açoite, 
a cortar-lhes, maldita ! os corações ! 
sempre a caliginosa, immensa noite 
a enlutar-lhes tremendas solidões !... 



242 



Sentir em torno o estrondear do mundo, 
sentir a festa, a vida, o turbilhão, 
e o tenebroso cárcere profundo 
a cobril-os d'eterna escuridão !... 



Sabeis o que é desdita, e as dores sevas 
da agonia sem luz, d'ancias cruéis ? 
Este espelho reflecte o horror das trevas !.., 
Ai ! vós destes-lhe' esmola, é que o sabeis ! 



Trevas ! trevas ! o horror da tumba em vida ! 
campa chumbada entre a existência e a luz ! 
via-sacra nocturna, erma, comprida ! 
passos mal firmes sob a enorme cruz !... 



E vivem, e sonham almas 
sob estes craneos-clausuras ! 
e nestas, mansões escuras 
quer Deus que floresçam palmas ! 
e que os ecos das venturas 



243 

achem ecos de saudade 
dentro d'alma ao pobre cego ! 
e que lhe seja conchego 
o calor da caridade ! 



Deus é grande f e em cada ser, 
quer gigante, quer insecto, 
ou seja cego ou vidente, 
planta uma dor, e um affecto, 
co'um raio do seu poder, 
<#'iima palavra clemente ! 



Para curar cada magua, 
põe o seu amor profundo 
entre as mãos da caridade 
quem faz cada átomo um mundo, 
e retrata a ittimensidade 
na mínima gota d'agua f 



Em cada luzente insecto 

de Deus scintilla um vestígio ! 

em cada ser incompleto 

se cumpre mais um prodígio !... 



17 



244 



Nos cárceres que em torno a mim contemplo 
julgais que as pobres almas escondidas, 
chorosas com seu luto, esmorecidas, 
nao terão para orar íntimo templo ? 



Se a abobada é sombria, ha luz no centro, 
onde cálida prece o peito exhala; 
nas janellas, se a luz bate e resvala, 
accendem-se os sacrários lá por dentro f 



Servem d'altares cinerarias tumbas; 
o amor pede mysterio onde se acoite: 
festas a Deus também por alta noite 
celebravam christãos nas catacumbas. 



Passa a abobada ingente, funda, espessa, 
de Deus o ouvido, e a débil prece escuta; 
do mundo os antros seu olhar perscruta, 
e as camadas opacas atravessa. 



E nem por escondida a humilde prece 
que nas azas do amor ao ceo se eleva, 
menos condão, menos virtude leva, 
ou se perde, ou se peja, ou se arrefece I 



245 



No temporal desfeito, ou no socego 
da calmaria, em tudo é Deus ! em tudo I 
no coro universal, na alma do mudo, 
na luz do sol, e nas visões do cego ! 



Onde houver Deus ha luz, amor, e festa; 
que a sua graça em raios se disparte; 
no mínimo, e no immenso ! em toda a parte 
a festa do infinito um Deus attesta. 



Animo, irmãos sem luz ! Bemdito o pobre f 
bemdito o que tem fome e o que tem sede f 
bemdita a flebil voz que chora e pede ! 
bemdita a mão que dá, levanta, e cobre ! 



Bemdita a virgem que, do triste albergue 
onde chora a miséria, a dor espanca; 
e co'a bondosa mão, pequena e branca, 
cruzes pezadas aos seus hombros ergue I 



Bemdita a caridade, o amplexo, o laço, 

que prende e envida á communhão dos seres; 

synthese dos amores e deveres; 

entre os homens e Deus fraterno abraço ! 



246 



Tudo do mundo a mão de Deus compensa: 
o pobre é rico de fervente prece, 
e de bênçãos d'amor com que agradece; 
e o rico, de venturas que dispensa. 



Embora ao cego a escuridão esmague, 
embora o seu altar só tenha cruzes, 
lá lhes pôde accender intimas luzes, 
sem que o vento de fora lh'as apague I 



O cego vê f : outros quadros, 
noutro mundo mais feliz; 
outros jardins e outros adros, 
com flores d'outro matiz; 



outros templos e castellos, 
mármores d'outro lavor, 
criptas, zimbórios mais bellos, 
e soes de mais esplendor ! 



O cego vê ! : mundos novos 
repletos d'amor e fé; 
casas brancas, jovens povos, 
onde tudo canta e vê ! 



Í47' 

Pelas paragens distantes 
do espaço, que é o mundo seu, 
vai... nas ilhas fluctuantes, 
pelos oceanos do ceo, 



como era tapete encantado, 
em cadeira de condão, 
correr seu mundo, assentado, 
e a sabor da viração ! 



Se ouve um canto, vê na mente 
formosuras e jardins; 
se escuta um órgão plangente, 
virgens, gloria, cherubins 1 



Se de jasmins ou violetas 
cheira os aromas subtis, 
vê nuvens de borboletas, 
frescura, arroios, matiz ! 



Se mão pequena e macia 
se achegar aos lábios seus, 
na inflammada fantasia 
vê primaveras e ceos ! 



248 

Sente, e a faísca resalta ! 
pensa, e o templo se accendeu ! 
íris as trevas lhe esmalta, 
e nellas um mundo e um ceo; 



caprichos, sonhos, chimeras, 
absurdo, enganos fetaes, 
tempestuosas primaveras, 
auri-roseos temporaes I 



Mas se um só dia se abriram 
olhos onde o mundo entrou, 
e após, sobre olhos que viram, 
fulminea chamma passou, 



todo o quadro do universo 
fica da alma na viuvez, 
e as notas do hymno disperso 
lá cantando t E quanta vez 



dentro do cárcere austero 
trabalha um génio immortal ? 1 
que o digam Milton e Homero., 
póde-o dizer Portugal ! 



r 



249 



Mais que dos lábios a prece 
quer Deus a do coração, 
mais o amor brota e florece 
nas trevas da solidão !... 



Sabeis neste momento o que lá vai nas almas 
dos pobres que não têm a esmola d'um fulgor ? 
Ergue-se um templo grande; e nelie o incenso e as palmas 
escutam prece humilde, e cânticos d'amor ! 



Luz trémula de prisma o templo sobredoira; 
uns braços fazem throno; um seio ardente, altar; 
sobre elle a caridade, alva, risonha, loira ! 
virgem que vem... do ceo I rosa que vem... do mar ! 



De pérolas se veste, aljôfares, e riso; 
põe bálsamos d 1 amor nas chagas do infeliz; 
tem azas; são de luz ! recende a paraíso; 
consola, dá... sumiu-se 1 e o nome seu não diz 1 



2S0 



E o cego ali se prostra em acto de humildade, 
e poisa aos pés do altar inteiro o coração ! 



Yós que hoje os soccorreis, vós sois a caridade ! 
elles, a prece humilde, e a immensa gratidão !... 



Disse-vos que o cego via 
quadros de muito primor; 
sim ! co'a luz da fantasia, 
que faz o engano maior ! 



Se achardes cegos, senhores, 
na turba, ou nas solidões, 
dae-lhes a mão, bemfeitores, 
que não vêm, não 1: têm visões ! 



Caldas da Felgueira, 5 de novembro' de .1866, 



O PENEDO DA MEDITAÇÃO 



„-"->■* 



Pobre rochedo ! sósinho, 
tão distante da cidade t... 
só do susurro dos montes, 
do rumorejar das fontes, 
da branda relva do prado, 
das franjas dos horisontes, 
tu queres ser contemplado ?... 



252 

— Meditação !... — Como é grande 
esse teu nome, rochedo ! 
Ai 1 como entende este nome 
quem ama e chora em segredo ! 



Sombrio I impassível I mudo 1 

esperas acaso alguém ? 

gigante inerte ! comtudo 

tu choras 1... porquê?... por quem?... 



Do monte cortado a pique 
porque, assentado na altura, 
espreitas tão debruçado, 
firme, attento, fascinado, 
o seio aberto do prado 
que te ha de dar sepultura?... 



Bem vês, victima da sorte, 
que, por fatal magnetismo, 
tu, pendurado no abysmo, 
lá tens d'encontrar a morte !... 



253 



Do meu soffrer resignado 
és eloquente memoria ! 
és o padrão mutilado 
da minha truncada historia! 
és !... não vão muito distantes 
momentos em que a seu lado, 
a mim e a Deus o jurei, 
nos poucos, breves instantes 
que, n'esta pedra sentado, 
junto d'ella meditei ! 



Tu, queres por companheiros 
só estes cerros tão tristes ! 
da queda que ha de matar-te 
vês a distancia, e persistes?!... 
Eu, doestes áridos montes 
onde tanto amor senti, 
só quero a triste saudade ! 
que as lindezas da cidade 
recordam-me o que eu perdi!... 



25á 

Ai de mim ! perdido o tino; 
prendeu-me um cego destino: 
sei que me vou despenhar ! 
bem perto chammeja o incêndio... 
debalde bradais: — Detende-o ! — 
e sei que me hei de abrazar ! 
aos pés me negreja o abysmo, 
e, por fatal magnetismo, 
hei de lhe a altura salvar t 



Ai ! n'esses breves instantes 
Que juncto d'ella scismei, 
que d'epopeias gigantes 
concebi, se as não cantei I 
E ella, volitando sempre, 
no monte, no vai, nas flores, 
do ceo na amplidão immensa t 
e amei-a, quando sorria, 
como a luz cT ultima crença, 
que mata se tem um fim t... 
e ella linda, linda... e fria 
como a estatua da indiffrença 
vinha poisar junto a mim I... 



2S5 



Perdi-me ! é tarde ! se eu esperasse ao menos 
dias serenos d'um viver feliz !... 
mas nunca !... ai, rosas, em que eu leio amores, 
pendidas flores que não têm matiz ! 



Rochedo, ao menos, ao viçoso prado, 
onde encantado o teu olhar ficou, 
mandas o pranto que te inunda o peito, 
ultimo preito de quem muito amou ! 



Mas eu, forçado a segredar sósinho 
n'este caminho de miséria e dôr, 
num rir forçado, onde o ninguém presume, 
escondo o lume d'infinito amor !... 



Alma, não deixes d' acolher constante 
clarão distante da longinqua luz t 
que, se ficares sem a imagem d'ella, 
erma capella, que te resta ?... a cruz 1... 



256 

Foge, foge, pensamento, 
das trevas d'esta amargura ! 
que após o negro tormento 
virá talvez a loucura ! 
vejo-lhe o vulto !... é medonho I 
oiço-lhe o rir !... faz tremer ! 
tem o andar pesado e lento ! 
fujamos, ó pensamento t 
não quero louco morrer !... 



Coimbra, 1855. 



TRISTE !... 



(NO ÁLBUM DA EXM." SNR.' D. RACHEL NAZARETH) 



Na mão, donzella, descançando tímida 
pallida fronte pensativa e triste, 
porque desejas, num sorriso languido, 
matar lembranças do que já sentiste ?t 
Morre o sorriso como a sombra ténue ! 
resalta á face o que no peito existe ! 



258 



Mulher, sê triste! que do mundo o riso 
é falso aviso t a falsa dita envida t 
Não tens um riso que te valha um pranto, 
bálsamo santo nos papeeis da vida ! 



Cinge-te a fronte divinal, mimosa, 
pura, saudosa, pensativa, linda, 
de roxas flores funeral diadema, 
sentido emblema de tristeza infinda ! 



Guarda-o t é transumpto de cruel memoria ( 
luto da gloria a que, a sonhar, sorriste ! 
Não queiras risos que te mintam festas, 
prendas funestas !... Ai, mulher, sê triste !.., 



Quando pairar o teu olhar suspenso 
no espaço immenso que te argenta a lua, 
saúda os fogos da mansão d'archanjos t 
Paços dos anjos são a pátria tua í 



E dize ao mundo, que te foi desterro: 
—Árido cerro, onde a flor definha ! 
lego-te o pranto que me inunda os olhos, 
pátria d'abrolhos, que não és a minha t... 



259 

i 



Rachel, sê triste ! No mundo 
tem magia o padecer t 
riso aqui, o mais jucundo, 
insulta, ou mente, mulher t 
Dizem que é forte a desgraça 
que em sorriso os prantos muda !... 
onde estão ingénuos peitos 
que o triste sorriso illuda ? 
E o rosto o peito espedaça 
com seus risos contrafeitos 1 



Ài t o prazer simulado t... 
Rachel, teu riso é forçado ! 
regeita-o, que vem mentir !... 



Se me pudesses ouvir !... 
eu contava-te o que vi 
num'hora em que estava triste t... 
Poi hontem... foi ! não me ouviste ? 
Pois olha ! chamei por ti ! 



Dentro da igreja vetusta 
carpia, solemne, augusta, 
cio órgão santo a triste voz; 
em carmes irmãos do choro, 



18 



260 

das virgens cantava o coro, 
por si rogando... e por nós í 
Entre esses etherèos cantor 
dos olhos caiam prantos ! 
adivinhei-os ! que ali, 
se não vi faces mirradas, 
senti vozes abafadas !... 
As portas eram fechadas, 
mas eu escutei e ouvi. 



Atravez de fenda escassa 
as aras do templo vi; 
luz amortecida e baça 
incerta ondulava ali ! 
dava dentro ao santuário 
esse clarão mortuário 
uma só vela no altar t 
cá fora, em manto alvacento, 
caia sobre o convento 
a triste luz do luar ! 

Eram da tristeza as festas 
que celebrava o mosteiro, 
com luz nas gothicas frestas, 
com ecos no espaço inteiro ! 

E onde estavas tu, Rachel, 
meiga, celeste visão ? 



261 

contemplavas o socego 
das estrellas no Mondego, 
e alguma pena cruel 
contavas á solidão? 
scismavas no paraíso ? 
contrafazias um riso ? 
matavas o coração ?! 

Ai 1 se tu viras o quadro 
d'aquella festa singela !... 
Faltavam flores no adro: 
tu és açucena, e és bella ! 
Sabes tanto da tristeza 
os segredos e a linguagem !... 
O templo, o canto, a deveza, 
tudo retratava a imagem 
do teu sentido \iver ! 
e eu quiz ver-te ali, mulher, 
por te ver dos negros olhos 
suave pranto correr, 
e o luar suavemente 
banhar-te a pallida tez... 
que os raios do sol ardente 
insultam apallidez !... 

Triste, procura o mosteiro 
de noite e á luz do luar ! 
longe ali do mundo inteiro... 
só Deus vê... podes chorar ! 



262 

Rachel, o canto que ouviste, 
se não te agradar por triste, 
perdoa ! inspiraste-o assim t 
Triste sou eu de saudade, 
d'esta risonha cidade... 
que vou deixal-a por fim ! 
Porém de ti longe, ou perto, 
na cidade, ou no deserto, 
nas selvas, ou no jardim 
hei de, em perpetua miragem, 
ver-te a seduetora imagem 
triste, a scismar junto a mim ! 



Coimbra, maio de 4855. 



FIEL-0-MOLLOSSO 



Eu quero muito aos cães ! pois nos carinhos 
que lhes vejo nos olhos, se os afago, 
ou, se lhes corro a mão pelos arminhos, 
nos beijos que me dão, não fico eu pago 
de todo o meu affecto ? Homens, é duro 
comparar- vos aqui f mas o futuro... 
(o presente e o passado assim o attestam) 
o futuro, vereis, dá-me razão. 
Estudados carinhos nada prestam; 
tendes néscios desdéns, mordeis a mão 
que vos ergueu do abysmo, e lambe-a o cão 1 



264 



E vós, meninos, que sereis um dia 
amparo, benção, fruto a vossos pães, 
como agora lhes sois flor e alegria, 
ouvi a minha historia, e nunca mais 
apedrejeis um cão ! nem persigais 
com motejos, um pobre, um desgraçado, 
um velho, um louco, um ébrio, um mutilado l 
Deus espreita do ceo, vossa mãe chora, 
e vosso pae castiga-vos. Agora 
vou contar-vos a historia verdadeira 
d'um câo que vale... uma familia inteira: 



I 



Era uma noite gelada, 
noite do mez de janeiro; 
pés de raro passageiro 
soavam pela calçada; 
e os varões do candieiro 
rangiam sob a rajada 
do vendaval do sud-oeste. 
No cemitério não longe 
carpia o feral cypreste, 
açoitado pela chuva, 
não sei que preces de monge, 



265 

ou que orações de viuva. 
No fundo, o mar encrespado, 
e a floresta dos navios, 
turma despectros sombrios, 
dormindo um somno agitado 
nas febris, tremulas ondas. 
Na cidade, a leve bulha 
Nalguma tarda patrulha 
fazendo as nocturnas rondas. 



Era no bairro onde ha flores, 
e bons ares, e trigaes; 
onde ha primavera e aurora; 
onde impossíveis d'amores 
sonha a bella olhando os mares, 
debruçada... scismadora 
no seu florido mirante, 
emquanto jorra delírios 
em gorgeados madrigaes, 
junto á enternecida amante, 
um rouxinol entre lyrios. 



Pois d'esse bairro apartado 
na mais solitária rua, 
vi, nessa chuvosa noite, 
sem um tecto onde se acoite, 
sem um lar onde se aqueça, 



266 

creancinha semi-nua, 
sentada sobre o lagedo, 
agasalhando co'um braço 
uma nevada cabeça 
em cima do seu regaço; 
do outro lado, attento e quedo, 
um cão lhe prestava encosto, 
e as frias mãos lhe lambia, 
e bafejava-lhe o rosto. 



Quem era a pequena dona 
de tão caridoso braço ? 
e o velho que ali jazia 
sobre o seu molle regaço ?... 



II 



O velho fora um soldado, 
duro como os bons arnezes; 
de coragem que deu brado 
contra hespanhoes e franceses. 



267 

Finda a guerra, ao solo grato 
voltou, pendurou a espada ; 
e era ver o Cincinato 
entre o arado, o ancinho, a enxada. 



Roubou-lhe um dia de casa 
a esposa, a garra da morte ! 
e nos seus olhos em braza 
sentiu lagrimas o forte ! 



Foi sentar-se á borda da eira 
sem desprender um lamento; 
mas, ai ! pela vez primeira 
o heroe se viu sem alento ! 



Saiu de casa o valente 
a espalhar a dor profunda... 
topou co'um ébrio contente !... 
Entrou na taverna immunda ! 



Bebeu, e sentiu quebrantos... 
saudades... febre de guerra I... 
bebeu mais, derramou prantos í 
mais... mais... e caiu por terra i 



268 

De noite, a filha enlutada 
entrou na mansão medonha, 
e ao descer a immunda escada 
disse-lhe: — «Pae, que vergonha !...» 



— «Foram penas, Margarida !... 

procuro, e não acho a morte !... 

A velha era a minha vida !.,.» — 

— «Pois que é isto?!.,, eu sou mais forte ! 



Sou viuva, e sigo avante ! 
Sou mulher, mas lido e ralho !» — 
— «Fuzile-me, commandante, 
que eu... desertei do trabalho.» — 



— «Pois nunca mais...» — «Dito e feito !» — 
— «Jesus...» — «Filha, e os meus pesares?!. 
Vou fazer saltar o peito 
como um paiol pelos ares !» — 



— «Mas, pae, as vossas medalhas 
viram morrer muita gente !» — 
— «Sim; mas não viram mortalhas ! 
morre fardado o valente ! 



269 

Nem viram morrer mulheres 
que nos dão a alma num beijo !... 
Fui vencido hoje ! que queres ?... 
mas fui-o por meu desejo.» — 



£ entrando em casa o soldado 
ajoelhava ao pé d'um berço, 
beijava a neta, e calado 
ficava em tristeza immerso. 



£ nunca mais para a vida 
fez esforço o heroe... o escravo ! 
e, ao ver a filha na lida, 
dizia-lhe: — «Vá, meu bravo ! 



Mereces a gloria e os hymnos ! 
lida, mulher-maravilha ! 
sustenta os teus dois meninos, 
eu e a neta... o pae e a filha !»- 



£ cada noite o soldado 
se amparava áquèlle braço; 
e, se caía prostrado, 
tinha por baixo um regaço. 



270 



III 



Annos mais, e a filha cança 
de carpir e de lidar: 
cai, morre ! e no pobre lar 
nao fica um resto d^spYança ! 



Fica a pequena Rachel, 
a loira flor do cerrado; 
o curvo inútil soldado; 
e o bom rafeiro — o Fiel. 



E as hortas murcham sem rega, 
e as vides sem poda estão; 
come o bolor o timão, 
e a ferruge, a enxada e a sega. 



Ao ver-se tao pobre e só, 
o velho ia ser blasphemo ! 
mas, num impeto supremo 
de vergonha, e brio, e dó, 



271 

trava da enxada o colosso... 
a enxada cai-lhe, e elle diz: 
— «Emquanto pude, não quiz f 
agora... quero, e não posso ! 



Vae, neta I vae pedir pão, 
já que trabalhar não podes ! 
Tu, velho, arranca os bigodes ! 
covarde, fraco, poltrão I 



Volta á negregada vida !... 
vae beber ! beber I beber f ... 
Fui eu que te fiz morrer ! 
Margarida ! ai, Margarida !... 



A velha era o meu amor t 
a filha... o dever, o esforço ! 
a netinha é o meu remorso !... 
Deus, manda um raio, Senhor !» 



272 



Sentada ao pé d'uma esquina 
pedia esmola Rachel; 
e o velho, magro Fiel 
guardava a triste menina. 



E cada noite o soldado 

se amparava à um débil braço; 

e, se caía prostrado, 

tinha por baixo um regaço. 



IV 



Chega a estação negra e fria, 
chega a inimiga dos pobres; 
na igreja da freguezia 
tange a campa !... e não são dobres. 



não ! são repiques de festa ! 
são alegrias da igreja ! 
porque na sacra floresta 
mais uma rosa viceja ! 



r 



273 

Porque a uma loira menina, 
que estava pedindo esmola 
todo o dia ao pé da esquina, 
Deus a ouviu, Deus a consola ! 



Morreu ?... quem sabe dizel-o ? 
vai deitadinha de costas)... 
mas tem luzes no cabello ! 
mas inda leva as mãos postas ! 



Descorada vai... De certo ! 
se a côr sempre lhe foi pouca !... 
mas leva um sorriso aberto í 
e inda um bem haja na boca ! 



Lembra a flor que e vento corta 
e lança á veia corrente: 
ninguém sabe se vai morta, 
se feliz, viva, e contente. 



Pois repique a freguezia, 
e na sagrada floresta 
haja galas e alegria 1 
na terra nem tudo é festa f 



274 

Lá deplora o dia inteiro 
um velho a teimosa vida 1 
e aqui, o fiel rafeiro, 
rojando a cauda estendida, 



segue á mansão derradeira, 
onde a cruz falia ao cypreste, 
a piedosa fogaceira 
que leva a offrenda celeste ! 



Treme o lençol de cambraia 
no taboleiro de neve !... 
serão azas que ella ensaia? I... 
por isso o anjinho é tão leve t 



E o pobre cão vai pasmado ! 
qual na estação dos amores, 
ave a quem levam roubado 
seu ninho armado entre flores. 



Olha cada passageirp, 
fareja cada cr e anca, 
mostra o fúnebre canteiro 
como quem pede uma espVança ! 



275 

E quando a terra lhe esconde 
essa adorada cabeça, 
foge... e nâo sabe por onde ! 
olha... e nâo acha a quem peça ! 



Uiva, gira e se lastima I... 
cala... escarva... arqueja... clama I... 
e vai lastrar-se-lhe em cima, 
inda a escutar se ella o chama ! 



Tenta a pedra... e geme... e luta... 
vai... volta... ulula... fareja... 
pára, a indagar se ella escuta ! 
geme, a tentar que ella o veja ! 



Granizo a torrentes chove; 
passa o dia, vem a noite ! 
o pobre cão não se move 
por mais que o coveiro o açoite ! 



276 



É noite, noite profunda, 
noite nevoenta, pesada; 
ouve-se uma voz pausada 
dizer na taverna immunda: 



— «Morreu; se eu sei que morreu í 

ia bonita, mas só t 

agora, o que me fez dó 

foi ver o cao !... que o vi eu !... 



atraz do taboleirinho, 
todo a chorar ! se eu vi tudo ! 
pobre cão ! tâo magro, e mudo 
por todo aquelle caminho !...» — 



— «Se o velho n5o firma o pé, 
quem no ha de agora amparar?...» — 
— «Ouviste?... senti raspar!...» — 
— «Onde?» — «Na porta !»— Quem é?...» 



277 

— «Oh ! não, não abras, António ! 
esta é a bora da creança !... 
Rachel !... não veiu ! descança ! 
vae, vae-te ! (cruzes, demónio I)»- 



— «Batem de novo !...»— «Quem vem? 
não falia?... não entra cá t 
não abras !»— «Abre !...» — «Pois vá !» — 
— «Cruzes !...» — «Abrenuntio!» — «Amen.» — 



Pasma a turba absorta agora ! 
um cão entra, olha, rasteja, 
fita as orelhas, fareja... 
dá volta, e sai porta fora ! 



Dir-lhe-ia a alma de Rachel: 
Amigo, já que eu não vou 
acompanhar meu avô, 
tu vais buscal-o, Fiel?... 



O cão foi achal-o ao lume. 
Nunca mais veiu á taverna; 
queimava-o em chamma interna 
dor que mil dores resume ! 



278 

Tanto essa pena o mirrou, 
foi tão profunda essa dor, 
tanto ardia esse amargor, 
tanto e tanto, que cegou l 



Cego, tomava a sacola; 
prendia ao fiel mollosso 
uma fitinha ao pescoço, 
e ia assim pedindo esmola. 



Quem deixaria de os ver 
nessas ruas mendigar ? 
o cão, tudo a acautelar; 
o velho sempre a dizer: 

— «Desertei do meu trabalho !... 
agora... quero, e não posso ! 
esmola ao fiel mollosso, 
que vale maia do que eu valho. »- 

Fiel, mal que desce a noite, 
corre inda hoje ao cemitério 
dormir no leito funéreo 
por mais que o coveiro o açoite. 



Estoril, 28 de junho de 1867. 



O HERMÍNIO 



Serra, três vezes salve ! Assim te ergueste 
negra em torno de nós, muralha enorme 
d'uma Bastilha agigantada, informe, 
horrenda, tenebrosa, olhando os ceos ! 
Salve, Estrella, colosso, que na Beira 
o tempo ergueu K padrão d'altos destinos ! 
altar d'onde as tormentas mandam hymnos 
nas azas dos tufões aos pés de Deus ! 



280 



Eis-me teu prisioneiro ! o escuro inverno 
o teu amante... o teu esposo, Estrella, 
mal que os umbraes transpuz cTessa Portella, 
cerrou atraz de mim negro portão. 
Cingiu-te com seus braços de gigante; 
cobriu-te com seu manto de chuveiros. 
Eis-nos presos, meus tristes companheiros, 
nesta lobrega enorme solidão ! 



Somente, como um raio d'esperança, 
inefável promessa de conforto, 
nos apparece aqui, nuncia d'um porto, 
a capella da Virgem, erma e só I 4 
alva, como os amitos da innocencia; 
pura, como os murmúrios d'uma prece; 
triste, como o chorar de quem padece; 
meiga, como o fallar de quem tem dó ! 

Virgem, ouve-me tu ! Emquanto o vento 
zune pelas quebradas, e os chuveiros 
se arrastam pelos cumes dos oiteiros, 
e as torrentes alagam cerro e vai; 
emquanto a serra estremecendo arqueja 
debaixo dos açoites da procella, 
Virgem, escuta I ouve meu canto, Estrella, 
e acompanhem-me os sons do vendaval. 

Capella da Senhora da Assedaça. 



281 



Hontem, á meia noite, ergueu-se do occidente 
um som rouco, e profundo, e prolongado, e ingente; 
mais forte que o do mar, mais cavo que o trovão; 
dera um gemido enorme a enorme solidão ! 
ouviu-o a serra inteira, e os ecos repetiram 
promptos de monte em monte o cavo som que ouviram. 



Dormíamos lá em baixo á extrema orla do vai 
na choça de colmeiro; humillimo casal 
onde raro se alberga... um cão, um pegureiro, 
um lobo, um caçador, bandido, aventureiro, 
que vai transpondo a serra e vé que a noite vem; 
eis quem pernoita ali; mais nada; mais ninguém. 



Dormíamos lá em baixo; os cães e os caçadores 
deitados sobre a palha. Os últimos fulgores 
de moribunda luz mostravam pelo chão 
disperso o trem da caça: a bolça, o cinturão, 
o torto polvorinho, as botas, o chumbeiro, 
e armas em funeral. O tecto de colmeiro, 
negríssimo do fumo. Ao fundo, inda no lar, 
um cepo quasi extincto a ouvir-se crepitar. 
Quadro para painéis, estudo para horrores, 
lembrando antiga lenda e antigos salteadores. 



282 



Seria meia noite... Estremeci d'horror! 
Um som cavo e longínquo, horrisono fragor 
que vinha do occidente, ecoou pelo horisonte !... 
Seria o abrir da serra?... o desabar d'um monte?... 



Cairam sobre a choça os vendavaes a flux !... 
A luz ondeou tremente... e em chispas foi-se a luz L 
Ao triste uivar dos cães, ouvimos assustados 
das feras respondendo os uivos prolongados. 
Nas fendas da parede o vento a assobiar 
gelava-nos o rosto e incendiava o lar. 
O rio, junto a nós, como o leão ferido, 
ouvi-o erguer-se torvo; e o seu feroz mugido 
da morte era o pregão. Tremia inteira a Estrella ! 
Sopeava-a sob o açoite a horrisona procella. 



— «Os Cântaros bramir ouvi, — disse um ancião;- 
sou velho e sou serrano; é mais que o furacão I... 
Silencio !... eis outra voz !... Roncam as Alagoas ! 
ao hymno dos leões responde o das leoas ?! 
dizei adeus ao sol que o não vereis aqui.» — 
Sumiu-se sob a palha e adormeceu. 



Saí. 



283 

Ó moradores dos plainos ! 
se nunca durante o inverno 
vos deu tentações o inferno 
de vir visitar a serra, 
se nunca nunca subistes 
a estes pincaros de gelo, 
onde um nevoeiro eterno 
vos esconde os ceos e a terra, 
não comprehendeis quanto é bello 
este gemer d' um gigante 
que soffre inerte o incessante 
esbravejar da procella 1 
Ó moradores dos plainos, 
que não conheceis a Estrella ! 



Os vossos tufões, são brisas; 
orvalho, os vossos chuveiros; 
jardins, vossas veigas lisas; 
alfombras, vossos oiteiros. 



Essas névoas transparentes 
que ao romper d'uma alvorada 
correm dos rios á flor, 
são como o veo da esposada, 
que envolve a face encarnada 
mas deixa ver-lhe o pudor ! 



284 

Esses mil listões estreitos, 
lisas nuvens alastradas, 
ao sol nascente — doiradas, 
ao sol posto — purpurinas, 
são como as róseas cortinas 
dos vossos mórbidos leitos. 



Aqui, sim I o inverno é inverno, 
e este é o paiz da procella ! 
aqui vive o gelo eterno ! 
aqui sozerana a Estrella 
espera o feudo que o oceano 
em mil aéreas galeras 
lhe deve e manda cada anno 
desde o principio das eras ! 
E cada nuvem pejada, 
galeão sombrio e tardo, 
cá vem depor o seu fardo, 
e descançar da jornada. 



Não trazem oiro d'Ophir, 
nem pérolas de Ceilão, 
nem diamantes de Java; 
fora caso para rir 
ver a serrana selvagem 
de catadura tão brava 
a ornar-se com taes enfeites, 



r 



285 

como a vaidosa donzella 
que namora a própria imagem. 
Grilhão é signal d'escrava; 
se é d'oiro, é sempre grilhão ! 
differe... em ser mais pesado ! 
Outros mimos quer a Estrella ! 
Chuvas torrenciaes que alagam 
o monte, os casaes, e o prado; 
granizo que estala, e mata 
os pegureiros e o gado; 
depois, a neve que os ventos 
estendem por cerro adiante; 
que ora simelha a mortalha 
do cadáver d'um gigante, 
ora a alvíssima toalha, 
feita dos linhos mais finos, 
a cobrir altar immenso, 
onde ensaiam psalmos e hymnos 
os génios da solidão, 
tendo as névoas por incenso, 
por celebrante o tufão, 
por acólitos e orchestra 
os vendavaes e o trovão. 



Quando saí da choça olhei para o occidente 
e vi crescer, crescer, como o subir d'um monte, 
o vulto d'um gigante, enorme, surprehendente, 
tendo na serra os pés, tocando os ceos co'a fronte. 



286 



Mal que movera as mãos, rasgou-se a névoa escura: 
a lua que descia, alumiava-o inteiro ! 
e eu vi-lhe o vulto informe; a horrenda catadura: 
os trajes d' um pastor, o rosto d'um guerreiro. 



Tinha na mão calosa um roble por cajado; 
capote de capuz, já roto e já sem pello: 
velho, negro surrão pendente sobre o lado; 
de neve, neve em floco, as barbas e o cabello. 



Vestiam-n-o uns safoes dos pés 'té á cintura. 
A sórdida camisa aberta sobre o peito 
deixava aperceber selvática espessura 
d'asperrimo cabello. 

E o gesto contrafeito, 



e os olhos cuja luz as sobrancelhas* somem, 

e a boca fumegante a arremedar cratera, 

tudo m'o fez julgar— fera com formas d'homem, 

ou homem que o Senhor quiz transformado em fera. 



Espreguiçou-se o monstro erguendo os longos braços 
que abrangem desde a Hespanha até o grande Atlante, 
limpou co'a manga solta os fundos olhos baços, 
olhou, viu-me, e sorriu-se ! O riso d' um gigante !... 



287 

— «Que vejo? eu velo, ou sonho? 

— Assim dizia 
o filho, neto, ou irmão do Adamastor. — 
Homem da terra baixa, que do dia 
nunca, nunca avistou primeiro albor, 
por medo á brisa matutina e fria, 
a visitar os ermos do Pastor ! 
e quando o inverno alaga, açoita e gela !... 
Que desejo, beirão, te guia á Estrella?» — 



— «Conhecer-te de perto, Hermínio duro; 

quiz ouvir-te fallar dos teus beirões, 

a quem deste arraial amplo e seguro; 

saber do teu passado as tradições: 

perguntar-te os arcanos do futuro; 

ver a Hespanha d'este alto, e os seus Leões 

que afiam para nós a garra adunca !... — » 

— «Silencio ! — diz o Hermínio — oh ! nunca ! nunca !... 



Silencio ! que levantas as pedras da montanha ! 
Acaso a lusa terra cairia em tal miséria ?!... 
Dormia ha pouco, e em sonhos ouvi dizer — Ibéria! — 
ergui-me de convulso !... mas tinha-o dito a Hespanha t 



288 

Se eu acordasse os mortos !... se Viriato ouvisse !... 
Se a Braz Garcia ao menos... mas não ! dormide, filhos t 
a Serra inda tem pátria ! na pátria inda tem brilhos ! 
a voz não foi dos nossos; a Hespanha foi que o disse. 



Queres do meu passado saber a historia ? é bella: 
a Serra é ninho d'aguias e a águia é independente; 
quando algemava os povos a Roma armipotente 
livre era em ninho d'aguias Lysia, na altiva Estrella, 



Quando por tredos fados ao nuto dum tyranno 
immigas hostes vinham talar a nossa terra, 
nunca a estrangeiro jugo curvou seu collo a Serra ! 
fallem romanas signas ! o árabe ! o franco I o hespano f 



Se Portugal tem hydras, colha-as ás mãos e esmague-as! 
Tremes pelo futuro ? não tremas 1 crê e espera ! 
aqui, valor não morre; nem vem traidora fera 
á crista dos rochedos onde têm ninho as águias.» — 



289 

Dissipa-se a vizão ; 
quebram de novo os uivos a calada ; 

redobra o furacão ; 
mais se condensa a névoa regelada, 
e o meu teimoso olhar já nada vê 

na plúmbea cerração. 



Quando o dia raiou, quando acordei, 

— perguntava: Meu Deus I vi, ou sonhei?., 

Mas eu tinha mais fé, 
e sentia mais forte o coração. 



III 



LAGRIMAS 



20 



lais le bleu du trepas cernait sa lèvre rose; 
Le sourire y mourrait a peine commencé; 
Son souffle raccourci devenait plus pressé, 
Comme les battements d'une aile qui se pose. 

Lamartine. 



5 «'OUTUBRO DE 1865 



O' minha mãe sem ventura !... 
minha mãe !... ó mãe querida ! 
abre a tua sepultura ! 



Aqui tens a minha vida ! 
vida inútil a seu dono; 
acceita-a, mãe ! volta á lida ! 



Antes eu durma o teu somno ! 
Sem ti, que ha de ser, agora ! 
mestas fadigas do outomno ? 



E em casa o que vai, senhora ! 
meupae, olha... escuta... espera! 
meu irmão, soluça e chora I... 



O' minha mãe ! quem pudera 
fazer que voltasse a vida 
como volta a primavera ! 
Minha mãe !... ó mãe querida !... 



Desatae-vos ! correi, ó minhas lagrimas í 
Flores ! velae-lhe o derradeiro somno ! 
Passae de leve sobre a campa gélida, 
aragens frias do ceifeiro outomno ! 



I 



Hei de morrer no outomno ! a quadra triste 
do desarmar do templo, ha?de encontrar-me 
scismando esmorecido entre umas folhas, 
e amortalhar-me tfellas. 



Quando as festas 
que a primavera e o estio a Deus offertam 
houverem terminado; quando a orchestra 
das aves da soidao calar seus hymnos; 



296 



quando o incenso, das flores no thuribulo 
for de todo apagado; quando a névoa, 
alva como os sudários, ao sol posto 
se correr entre as serras e as estrellas; 
quando as folhas, do hálito da morte 
cairem bafejadas, como caem 
festões e arcos de loiro, após a festa, 
das columnas da igreja sobre as campas; 
quando o ermo for ermo, e triste, e morto, 
hei de eu morrer também ! sinto-o cá dentro. 



O meu querido outomno, o velho pródigo 

que dá quanto possue por ficar triste, 

e pobre, e só, chorando silencioso 

na solidão luctuosa, ha de encontrar-me 

um dia vagueando sem conforto 

entre os despojos do festim opíparo, 

como ave espavorida que nâo ésma 

a dirigir um voo, e só circumda, 

com piar lastimoso, um ponto escuro 

onde ha pouco existira um ramo e um ninho; 

ou como o que procura entre ruinas 

conhecer umas pedras da poisada 

que desabou poupando-o e o tornou órfão; 

e eu hei de lhe dizer coisas tão tristes, 

que ha de ter dó de mim, e agasalhar-me 

nas caridosas pregas d'um sudário 1 



297 



II 



Ai, que tristeza a minha ! ai, que soidão profunda ! 
Pranto, estou só, és livre ! irrompe, suavisa, inunda 
o rosto contraído, o seio... este volcão 
que se accendeu cá dentro, e abraza o coração ! 



Um dia minha mãe dis se-me: 

— «E's triste, filho! 
não falias, não sorris, teus olhos não têm brilho ! 
escutas sem ouvir, olhas, não vês ninguém, 
e não vens acolher-te ao seio de tua mãe !... 
a cada teu lamento, o pobre aqui responde ! 
procura-o, que te espera ! e vê como te esconde, 
e te consola, e anima !...» — 



Ai ! vede o que é ter mãe ! 
Quem diz o que ella diz? Ninguém! ninguém!.,, ninguém! 
Àquelle amor celeste... o seio... arí nada existe !... 
A minha mãe morreu !... Nem tenho onde ser triste !... 



298 



III 



Sempre me estão do ouvido 
esses funéreos dobres, 
e o canto dolorido, 
e o soluçar dos pobres ! 
dos pobres, seus encantos, 
que á funeral jazida 
vinham trazer-lhe os prantos 
da extrema despedida ! 
dizer-lhe: — O' mãe, morreste ! 
deixaste os filhos teus !... 
vimos lembrar a Deus 
o bem que nos fizeste !» — 



IV 



Fui achar meu pae tão triste ! 
co'as faces tão maceradas I... 
carpia as barbas nevadas, 



299 

co'os olhos postos no ceo ! 

beijei-lhe a mão que tremia, 

fria, fria como gelo ! 

se ha martyrio nobre e bello, 

bello, sublime era o seu ! 

O martyr de tantas penas, 

sereno entre tantos luctos, 

disse-me d'olhos enxutos: 

— «Sòu mais velho, e fiquei eu !...» 



Pobre de meu irmão ! coitado d'elle ! 
sacerdote de Deus, na flor da idade 
votado ás solidões ! victima imbelle 

da mais cruel saudade ! 
tao mimoso que foi do seu carinho... 
hoje tao só no solitário ninho ! 
Já nunca mais a sua companheira, 
seu amor, seu orgulho, e seu desvelo, 
ha de esperal-o a noite longa, inteira, 
a rezar e a escutar se lhe ouve os passos 

de volta ao presbyterio I 
não mais ha de correr a abrir-lhe a porta ! 
não mais hade cingil-o entre os seus braços !... 



300 



Gomo ha de elle passar do cemitério?... 
Como ha de elle viver na casa morta ?... 



VI 



Quando ella agonisava, 
suspensa a vida entre o mysterio e o mundo, 
procura va-se um padre, um velho... um justo 
que lhe rezasse as preces da agonia. 
O filho sacerdote, que chorava, 
ergueu-se, e disse então, solemne e augusto: 
— «Se minha mãe me visse moribundo, 

não me deixava o leito; 
quero pois que a santinha deixe o mundo, 

encostada ao meu peitol 
quero rezar-lhe a prece derradeira f 

eu sei que isto a consola.» — 
E foi-lhe ajoelhar á cabeceira. 
Resvalava-lhe o pranto pela estola, 
pelas dobras do leito mortuário, 
luzindo a espaços com sinistro brilho; 
a voz, estrangulava-lh'a a garganta; 
tremia-lhe entre as mãos o breviário; 

mas a supplica santa 
mandou-a a Deus o soluçar d' um filho. 



301 



VII 



Eu lia-lhe os meus versos... 
versos?!... uns ais sem eco ! versos, não ! 
uns fragmentos avulsos e dispersos 
do meu dilacerado coração ! 
eu lia-lhe uns lamentos, que a sua alma 

sabia que eram meus ! 
era pedir conforto, abrigo, e calma, 
sem lhe dizer: — «Sou martyr I» — que só Deus, 
ou coração de mãe, são bons juizes 
dos estragos d'essa arvore maldita 
que em nosso coração lança raizes, 
e em lagrimas floreja, e fructiflca em cantos, 
mais tristes do que a dor que se baptiza em prantos, 

e chama-se desdita. 



Ella ouvia receiosa, 
e o seu seio dolorido 
applaudia co'um gemido 
cada estrofe lagrimosa; 



302 

que ou nos clarões da memoria, 
ou nos affectos do peito 
achava o occulto conceito, 
e adivinhava-lhe a historia. 



E exclamava:— «Que doidice ! 
choro e rio I que simpleza !...» 
Ai ! no sorrir que tristeza ! 
ai ! no chorar que meiguice ! 



E após tornava: — «Já viste 
chorar assim por chimeras?... 
Tão alegre que tu eras... 
filho, quem te fez tão triste?...» 



VIII 



Ao descair da tarde 
entrava minha mãe no cemitério, 
e regava as florinhas dos canteiros 
que circumdam as campas. Certamente 



303 



aguella vida se sentia extincta, 
e ás pavorosas portas do mysterio 
fabricava o casulo onde esconder-se, 
para d'ali voar, larva celeste, 
a pedir melhor vida a melhor mundo !... 
Florinhas tristes, companheiras d'ella ! 
se em torno a vós adejam borboletas, 
não lhes fecheis o cálix I debruçae-vos 1 
dae-lhes o seio, os néctares, o incenso ! 
não perdeis nada ! á noite cada estrella 
chorará copioso e doce orvalho. 

Quem sabe se ellas vão buscar o Immenso ? 



IX 



Um dia 
a minha boa mãe (como eu desejo 
repetir este nome ! a dor mais forte, 
cevando-se, minora) offereceu-me o ensejo 

de ser seu companheiro 
na pia jardinagem; 
e fomos.de romagem 
ao seu jardim, que era o jardim da morte ! 



304 

Era de ver o desvelo 
com que ella, de flor em flor, 
voejava, loquaz e acceza, 
como zumbidora abelha 
que anda a lidar sem descanso 
entre os rosaes da deveza; 
e dava cuidado e amor: 
aqui, ao goivo singelo; 
além, á dália orgulhosa; 
logo, á viril romaneira; 
ao cedro, á acácia, á mimosa, 
á murta, ao lyrio, á roseira !... 
Tinha ali prazer completo I 
em cada cruz, uma gloria t 
em cada campa, um affecto ! 
em cada affecto, uma historia !... 



E ella contava os tormentos 
de tanta sorte inclemente, 
ajuntando a cada nome, 
as saudades, os lamentos, 
a miséria, a paciência, 
dos que essa terra consome ! 
Era o epitaphio vivente 
de cada morta existência ! 



305 

E eu disse-lhe: — «Ó mãe, que anceio 
te prende a quanto é funéreo ? 
Não mais finados ! teu seio 
é jardim, não cemitério ! 



Como nasce, e viça, e medra 
dentro em ti cada amargura!...» — 
— «Filho, qae lettra, ou que pedra, 
tem do pobre a sepultura?» — 



— «Porque estas florinhas hoje 
affagas com tanto geito ? 
— «Sinto que o dia me foge: 
ando a compor o meu leito. 



Ando a enfeital-o de flores; 
quero-o garrido e formoso ! 
a morte é nuncia demores; 
sou noiva do eterno Esposo f 



Não me foi contraria a sorte ! 
Para mim, já nesta idade, 
todo o grande horror da morte 
cifra-se numa saudade !» — 



306 



X 



Ao pé da Residência ha três loireiros 
que se abraçam co'a rama; ao lusco-fusco, 
avesinhas aos centos vem dormir-lhes 
entre as fechadas folhas; velhos ninhos 
lá ficam esperando as primaveras, 
forros de musgo novo, e as novas proles. 



Um dia mão cruel quiz derribal-os ! 
minha mãe prohibiu: 

— «São meus I — disse ella 
Tudo aqui é da igreja, — a mãe dos pobres, — 
só !... deixae-me os loireiros !» — 



— «Mas, senhora, 
são arvores sem fruto ! as ramas largas 
servem só de acoitar aves damninhas, 
e assombrar o passal ! estas raizes 
vão-nos comer as hortas e os pomares !...» — 



307 



Minha mãe conhecia as avesinhas !... 
estima vam-na tanto as mães-e os filhos !... 
tantas vezes lhes dera pão no inverno, 
ali, no parapeito da janella !... 



— «Deixae-m'os— exclamou— também são pobres 
os que ifelles se abrigam!... Meus amores, 
quando á noite chegassem, que tristeza, 
vendo por terra o seu palácio aéreo !... 
onde iriam as mães prender seus ninhos?... 
Que diriam meus filhos?...» — 



Avesinhas 
que olhais cada manhã para a janella ) 
olhais debalde !... Ide cantar bem longe !... 



XI 



Altares d'esta igreja, eis-vos sem flores ! 
sois tristes ! Já são terra as mãos cuidosas 
que vos vinham trazer o aceio e as rosas !... 



st 



308 



Também vós trajais luto !... é justo ! é bem f 
ella era aqui a pomba do sanctuario, 
era alegria, paz, conforto, e abrigo !... 
Eu choro !... sede vós tristes commigo !... 
A serva do Senhor... foi minha mãe !... 



Jamais na igreja entrou alma tão cândida, 
maior fervor no orar, amor mais fundo ! 
passou no mundo sem saber que o mundo 
tinha traições, parceis, crimes lethaes ! 
sabia só que havia pena e lagrimas ! 
haviam-lh'o ensinado as próprias dores !... 

Altares do Senhor ! heis de ter flores ! 

mas eu... nunca as terei !... Que espero eu mais? 



XII 



Minha mae ! dês que morreste, 
nao sei que intensa negrura 
de penas e de tormentos, 
me envolve, opprime, e espedaça ! 
talvez por isso, alma pura, 



309 

rosa do jardim celeste, 
não possas ver-me dos ceos f 
mas se ouves os meus lamentos, 
has de saber que são meus ! 
Pede, oh! pede, mãe, a Deus 
que mande á minha soidão 
um raio da sua graça 
rasgar-me a nuvem tenaz ! 



Pois todo o martyrio passa, 

todo o crime tem perdão, 

todo o infortúnio acha um termo, 

só para mim não ha paz ?! 

hei de entrar no mundo, e um ermo 

achar sempre em torno a mim ?!... 

apalpar o coração, 

mirar-me co'os olhos d'alma 

no espelho da consciência, 

e ver... um martyr sem palma ? 

e ter horror da existência ?! 



Minha mãe ! se eu enlouqueço?! 
se a pobre razão se esvai ?! ... 
Oh ! não ! tu velas, e escutas 
as minhas penas ! Meu pae 
morria se eu lhe morresse f 



310 



Vê !.,. tenho as faces enxutas ! 
não tenhas pena; sou forte ! 
Tu lá tens o amor e a prece... 



Fallei de loucura e morte ?! 
não ! todo o martyrio passa ! 
tu pedes a Deus e desce 
um raio da sua graça!... 



XIII 



Bem sei que ella vive além, 
por trás d'aquellas estrellas ! 
quando eu choro, riem ellas, 
que sabem de minha mãe ! 



Choro... não é de saudade ! 
choro com pena de mim ! 
é porque me vejo assim... 
no meio d'esta orfandade ! 



-T-T-y -»-*-*— ~ 



311 

Mas.,, ella chora também ! 
e as lagrimas são aquellast... 
Que sementeira de estrellas 
choradas por minha mãe f... 



XIV 



Como os olhinhos da abelha 
attrai o viço das flores, 
levam-me a vida as saudades 
atrás d'aquelles amores ! 



Quero chorar... e não posso; 
quero fallar... e emmudeço; 
quero sorrir... e suspiro; 
quero viver... esmoreço ! 



Se eu fiz d'este amor um culto ! 
Se eu sou como ave estrangeira 
que viu partir seus amores, 
e aqui ficou prisioneira J 



312 

Se eu sou como alma penada 
que, envolta em lençol funéreo, 
anda a cumprir romarias 
em torno d'ura cemitério ! 



A quem perdeu tanto affecto 
ninguém nunca diga:— «Esquece la- 
que se acaba o alento á vida 
quando a saudade esmorece ! 



ÍNDICE 



I— COROA D'ESPINHOS 



Deo Gloria!. 
Pena e perdão . 
Consummatum est! 
Stabat Mater 
Jesus. 



3 

5 

13 

21 

31 



H-ROSAS PALLIDAS 



A roeu Pae 

Le Roi est mort!— Vive le Roií 

Ave, Labor!— A* Cidade Invicta . 

No álbum d'Arthur Napoleão. 

A Festa e a Caridade . 

No anniversario de Júlio de Castilho 

Os meus trinta annos . 

A madame Lotti Delia Santa. 

Cypreste e Rosas 

Num álbum .... 

Dizem 

No álbum do meu amigo Rocha Paris 

Arbusto maninho. ••...., 

A' sentida morte do meu especial amigo António d'Albu 

querque do Amaral Cardoso . 
Trinta e dois annos . 

Miragem 

Um Mocho—(Passatempo d'um seráfo d'inverno) 
No álbum do meu amigo A. de Gouveia Osório 
Adeus 



41 

43 
49 
53 
57 
69 
71 
77 
81 
85 
87 
91 
93 

97 
101 
105 
111 
119 

121 



314 



No álbum da exm. a snr." D. Maria Anna Paes Barreto, de 
Pernambuco 

A minha estrella . . 

Minha barca! . . . ... . . . 

Versos que os filhos de Camillo Castello Branco offereceram 
com uma coroa de loiros a António Feliciano de Casti- 
lho na accasiâo em que elle assistia á inauguração d'um 
monumento que lhe era consagrado na quinta de S. Mi- 
guel de Seide ....... 



125 
127 
131 



Já?! 



Loucuras . . . . . 

Os sonhos do escravo branco— (Fragmento) 

Esterilidade 

As novas conquistas .... 
Foge, 



Faço idéa 

A Judia 

Tântalo 

Um canto da puerícia 

Bem-vinda— (Por occasião do consorcio de Suas Magestades 

Fidelíssimas o Senhor D. Luiz e a Senhora D. Maria de 

Saboya) 

A Hortênsia 

Anniversario 

Entre flores 

Num álbum 

Zara— Conto de moiras encantadas. 

Vae, mas volta! 

A folha verde — (Reminiscências do Carnaval) 

A Borboleta 

No álbum de Arthur Napoleão — (Na véspera da sua partida 

para o Brazil) .... 

Os Cegos 

O Penedo da Meditação 

JL X fole I • • « ...... 

Fiel-o-mollosso . . . 

O Hermínio 



135 
137 
141 
149 
153 
155 
167 
171 
173 
183 
185 



191 
195 
201 
205 
211 
213 
223 
225 
233 

239 
241 
251 
257 
263 
279 



IH-LAGRIMAS 



5 d'outubro de 186S 



-tfúl 



293 



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